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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 12 de abril de 2007

PROVA DE ESFORÇO IMPOSSÍVEL PARA QUE A SORTE GRANDE ACONTEÇA

Acordou a sorrir. Remirou-se no espelho e gostou de quem lá se via a vê-lo. É sempre tão simpático e benfazejo que alguém nos sorria logo pela manhã. Hoje, apesar dos prognósticos de chuva na irrequietude sensível nas cortinas, nem a fastidiosa casmurrice de rapar a barba à navalha o apoquentaria. Claro que se a deixasse crescer até ao peito, como desde sempre se lhe oferecia fazer de cada vez que a fazia, pouparia trabalho e curativos nos golpes, fazendo por ignorar as pragas cuspidas e as respectivas mordidelas na língua. Mas envelheceria uns dez anos, se não mais. E acontece que a idade, nesta idade, já precisa de se remirar no espelho e de gostar, sem fingimento nem máscaras, de quem lá se veja a olhar para nós.
As superstições ainda são de comércio livre para pastoreio de quem disso gaste, o que nem é o caso. Todavia, e se hoje fosse deveras aquele dia? E se por trama do acaso se conjugassem, nas próximas horas, as condicionantes mínimas para que um confortável pecúlio o bafejasse, enfim, e nesse mesmo bafo se configurasse a já quase desesperada reviravolta?
Cumprimentou o vizinho, que com gentileza lhe franqueara o acesso ao elevador, e ao assomar à porta do prédio contrariou o hábito dos passos e optou pela direita. Já o vizinho apontou ao sentido inverso e aí vai ele, de pasta na mão, bamboleante, sumindo-se sem pressa na multidão, após um breve aceno de despedida até mais logo.
E o sorriso interior permanecia aceso e favorável à apetência de saudar toda a gente com quem se fosse cruzando, mesmo que desconhecida, e de retribuir todos os sorrisos e esgares e bocejos confrontados. A luz matinal, porque reflectida pelos olhos e porque neles guardada e posta ao serviço de quantos mais olhos não tivessem luz nem promessas, tudo justificaria e daria a entender, se necessário.
Começou por comprar o jornal no quiosque da praceta, com atenção aos percalços na travessia da avenida, desandou até ao parque e nele entendeu deambular à toa entre canteiros e arvoredo, apenas em busca do íntimo gozo de ouvir as areias retrilhadas pelos sapatos. Não muitos metros depois, mudou de estratégia, ao apetecer-lhe sombra. Sentou-se no primeiro banco encontrado, corrigiu a posição dos óculos, desdobrou o jornal com os vagares de quem se sente sem pressa, e teve uma ideia: comprar uma cautela, um vigésimo, e nesse gesto de quase nula importância a hipótese de fuga ao espectro de todas as noites, na deita, se sonhar dono do mundo, e todas as manhãs acordar e se descobrir de bolsos tão esburacados como as expectativas num morto.
Como se a ideia, repentina, lhe picasse as nádegas, correu até ao quiosque e só parou, já de regresso, a meio da avenida, de olhos escancarados e um pedacito de papel colorido, cai não cai, a tremelicar-lhe nas mãos, quase tão tremelicantes como o resto: ali, a uns milímetros de distância, ainda a esfumaçar pelas ventas e a soletrar ameaças de pneus queimados, vê-se e ouve-se um carro e uma buzina a gritar em uníssono com a apoplexia do condutor, um taxista. Atabalhoado, de nariz no asfalto ao pedir desculpa, agradeceu e mandou-se em corrida pelo parque adentro, à procura da sombra e do banco onde o jornal, com os óculos pousados em cima, lhe ficara.
Mais adiante, ainda que não recomposto do susto, retomou o sorriso como arma e armadura, aventurando-se outra vez na selva das ruas. Almoçou, sem fome, numa taberna de moscas e fritos com semanas de velhos, caminhou através das horas como se nem as viesse contando ou controlando pela própria pulsação, e começou a perceber que o sorriso, como fórmula secreta, já não funcionava. Ter-se-lhe-ia desvanecido a aura, não duvidava, quando ouviu e viu a morte a milímetros. Tão próximo dela se chegara a crer, que ainda chegara a dizer-se adeus e a desfiar, num milionésimo de segundo, o imenso rol de projectos postos em pauta e então votados ao arquivo dos torrões às pazadas entre epitáfios.
Enquanto se inquiria num reflexo de montra que lhe atraíra os olhos e os passos, escutou um alarido em tom crescente e logo depois um estrondo seco, sem eco, qual saco de cereais arremessado dos céus: aí meio metro atrás dele, na calçada, esparralhara-se uma trouxa de roupa sangrenta, com carne e ossos quebrados lá dentro, e a pulsar ainda, a pulsar ainda, a pulsar ainda. Sem querer ou a sério, alguém se precipitara do cume da vida (alguma mansarda com flores a secar para um gato agora órfão), e quase matara dois em vez de um, quando a mortalha de névoa já tombava sobre a tarde.
Antes que alguém se lembrasse de o acusar de qualquer coisa e de lhe pôr a canzoada atrás, arrancou em desatada correria até casa, para dar de caras, ao entrar no prédio, com o mesmo vizinho matinal. Ignorou deste a simpatia do cumprimento e o obséquio do elevador, galgou os degraus, dois a dois, até ao décimo-terceiro, deixou-se despenhar em cima da cama e ali se ficou, muito quieto, de mãos comprimidas contra os olhos e de ouvido pregado aos rumores da rua, sem sequer fechar a porta. Nunca se veio a saber de que morreu.
A taluda foi sorteada na manhã seguinte, mas a fracção dele não teria nada, já que o taxista ainda está na praça e nem de carro trocou.