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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 28 de março de 2007

O PRIMO DA CIDADE, UM ESCULTOR DE INERTES SEM GOIVA NEM FORMÃO

(ao Jorge Oliveira)

Como é que, com ingredientes vulgares, vulgar ambiência e vulgares cometimentos por enredo, se pode engendrar uma história em que a vulgaridade de ter um final feliz (porque pressentível desde o primeiro esgar mental fincado sobre a monda palavreira) lhe permita vencer a peneira autocrítica e chegar apetecível a quem saiba e mereça ouvi-la? Passe a presunção de quem sem pudor a põe ao léu, assim, e eis uma das tais histórias de espontânea revelação entre conversas, muito perto ainda de ser verídica, e considerada ideal para ser contada, ao sábado e aos demais dias da semana, ante o estímulo do primeiro café matinal, numa qualquer cidade onde o sadio costume de perambular pela baixa ainda tenha os seus crentes e só por isso se transforme, como adiante se depreenderá, em material de modelagem e mãos operárias e obra acabada a preceito, com amor.

I

Namoriscavam-se às escondidas do pai. O rapaz era filho de gente paupérrima, sem bens ao luar. Logo, apenas tolerável, pela mãe, e enquanto coisa melhor não saltasse ao terreiro a disputar a donzela. E quando tudo aparentava acomodar-se a favor da paixão proibida, apareceu em campo um daqueles partidos irrecusáveis, que num espaço de poucos dias, quase sem luta, a arrebatou para as lonjuras amazónicas. O arteiro usurpador já por lá construíra a sua mansão, entre chácaras de terra vermelha, pantanais a perder de vista e engenhos de cana e café. De tal jeito seria o desnível entre os argumentos em torneio, que nem ela, enamorada mas ciente, se atreveu a oferecer resistência ao ímpeto do vitorioso, e lá abalou mais ele, deixando por terra, sem alento, o derrotado.
Apesar de tudo, por cá ou por lá, embora nunca tenha sarado tão feios aleijões no imo, o tempo fez secar prantos e reerguer ombros circunflexos, levando a que cada um desses toleirões apaixonados se devotasse ao cálice do olvido e à utopia de lhe minimizar a mordedura. Ou na prática, afinal, conformando-se à imponderabilidade de prosseguir a caminhada através das respectivas sendas em opção: ela, bem casada, lá pelo sertão remoto; e ele, roído de mágoa e desconsolo, aquém-ondas, a casar quanto baste e depressa com alguém não previsível na redacção do guião original.
O tempo, todavia, esse mesmo tempo que persegue, aprisiona e submete quem o não saiba respeitar, poderá ser libertário e repositor da ordem esmagada sob as botifarras da pesada lei do mais forte. Um punhado de anos após ter navegado para a outra margem do oceano, ela voltou, viúva, e talvez mais bela que na hora desgraçada da partida, já senhora feita: o marido fora trucidado pela engrenagem de um dos moinhos com que fabricara a fortuna. E na berma de cá, como se artes obscuras ainda o tivessem debaixo de mira, o quase noivo anterior, um carteiro em ascensão profissional via estoicismo, também ele enviuvara: tanto a mulher como o crianço, o primeiro, teriam sucumbido ao trauma do parto. A quem é que desde logo não ocorreria como plausível a conveniência de de novo juntar os dois amantes, para que pudessem recuperar tantos anos mal perdidos e reviver o que nem teriam vivido? Ao velho. Só ele negou de pronto o seu aval ao sonho de reconstrução, posto em projecto por quantos (não apenas eles, pombos em busca de anilha sem pombal aonde) os conheciam de perto e deles sofreram os lances, como se na própria carne.

II

Ainda por aí há valores estabelecidos – serôdios? enrugados? poeirentos? – cuja singular invocação confundirá raciocínios e contas mil vezes executadas, sem que os lucros em carteira satisfaçam, seja quem for. Como dar cobertura à ideia de ver uma filha com quarenta anos, viúva, sujeitar-se aos arbítrios patriarcais? E em que mãos sopesar a obrigatoriedade de ter licença explícita do pai no relativo à hipótese de um segundo casamento, desta feita por amor antigo? E a quem rogar que interceda no intuito de demover a montanha, intransponível porque empedernida a partir dos tais valores cuja colheita se esqueceu na árvore?
A toda a gente foi resistindo o patriarca. Nem o padre, bento e salmódico ao emborcar o copo anfitrião, o levou a aceitar a evidência de factos sem facto à vista; nem o barbeiro, senhor de letras e de grande saber acerca das moléstias no tento; ou até o cabo, comandante da guarda e amigo antigo; ou mesmo o guarda-livros da fábrica, indivíduo ilustre por jogar xadrez com o farmacêutico; ou este e outros, fossem quantos fossem esbarrar nos olhos remelosos e amedrontados do velho, se o que ele tinha era medo, nem mais, do que o futuro genro lhe impusesse como retaliação da injustiça de que fora alvo sem culpa formada. Quem o convenceria da inexistência de maus intentos selados no malote do carteiro? E de tal maneira esse velho medricas se enfronhou na resistência ao enlace tardio, que se enfiou na cama sob a casmurrice de dali não sair mais até ao fim dos seus dias, como se sofresse de alguma maleita imune aos unguentos e às mezinhas ervanárias.
Entretanto, procurando não sobrecarregar o tom patético da caricatura que só a embirração paterna pretendia perenizar, os outra vez namorados lá se encontravam, às ocultas como antes, em casa de pessoa amiga, não sabendo por que meios desmantelar, sem lanhos nem luto, uma tão compacta como abstrusa renitência. A quem pedir ajuda? A quem estender as mãos em súplica? A quem pôr velas ou prometer penitências a cobrar em géneros? Alguém saberia de alguém industriado para partir pedra sem recurso à brutidão de outras marretas que não fossem as do olhar, da voz, das palavras sensatas, se deixadas fluir como pétalas de rosa num ameno fim de tarde em pleno Outono?
“Só se fosse o nosso primo da cidade”– pensou, a meia-voz e abraçada à inquietação da mãe, a menina com quarenta anos mal vividos, olhando sem olhar o horizonte.

III

O primo chegou a meio da manhã. A esperança esperava por ele nuns olhos olheirentos, já quarentões e ainda audazes no arremesso. E com ela, a mãe, à porta de casa, completando o ramalhete das aparências que sempre convém manter diante do povo. E lá dentro, metido na cama, de cobertas repuxadas até aos pêlos da barba de muitos dias sem gume, respirando com sonoridade e largando peidos entre tosse forçada como disfarce oportuno, o enfermo, sem maior enfermidade que a de um tino já ultrapassado, haverá milhões de anos-luz, pela correria dos astros na fundura do infinito.
Num quarto de minúsculas dimensões, onde mal caberiam a enxerga e o óbvio penico por debaixo dela, e numa atmosfera irrespirável por gente sã – o mofo de preconceitos puídos por excesso de uso, à mistura com a ressaca de peidos mortos em contínua fermentação, não esquecendo o mijo a vaporizar-se noite e dia –, o primo pensou, ao entrar: se até o mais tosco e informe dos madeiros se pode transformar numa obra-prima em escultura, não terei eu o engenho de esculpir neste tronco contorcido um ícone à paz no mundo?
De que estiveram eles a falar sem palavras inteligíveis aquém das muralhas? Qual o tema em agenda, sabia-se. Mas por que voltas dar a volta e voltar incólume da assombração de tantos anos casmurros? Em que argumentos empinar ainda escadas e cordas para que a conquista da torre venha a ser loa e gesta de embalar vindouros? Não se sabe.
Apenas se sabe que umas três horas depois de ter penetrado no habitáculo do monstro, o primo saiu, são e salvo, e tornou a entrar, levando a prima de braço dado até ao pai, para que ela o ajudasse a levantar. É que os sinos estomacais já batiam a rebate, e muito haveria, nos próximos dias, a festejar lá em casa sempre que o correio chegasse.

IV

“Sem que nada lá tivesse vendido, foi a melhor venda que fiz até hoje”–, contou, meses depois, o primo da cidade a alguns amigos, poucos, ignorantes dessas trucagens que se prendem com as oscilações do mercado.