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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 4 de maio de 2007

A DONO NOVO NOVO ASNO QUE VINHO VELHO OU NOVO TANTO VALE

Teria começado as perambulações de almocreve como lacaio, desde a fuga aos destrambelhos da mãe, meretriz cujas coxas se gabavam de até do rei, em noitadas de ouro, serem reserva de pasto. Na rampa do ocaso, porém, quando já não era senão cobre e verdete o derruir das noites, só os ínfimos esbirros da realeza e afins delas acarretariam o gosto e o aroma em seus empertigados bigodes. Do pai, um qualquer sem-nome entre o magote decrescente noite a noite, nunca ele soube.
Por mester desses dotes tomados como naturais em nascidos sob a égide de tão antigo ofício materno, asinha veio a saltar de lacaio a chefe de fila, ao conseguir o feito de comprar um cavalo razoável, embora maroto. Tantas lhe fez, que o cedeu a uns ciganos a quem deveria dinheiro. Mas essa era apenas a versão com que tentava desculpar-se ante si mesmo. O jogo, e de forma alguma a maroteira do animal, é que terá estado na origem do descalabro e da penúria, ao extremo de se ver reduzido a adquirir uma mula velha, magra e desdentada, no sufoco de não perder para a concorrência os fregueses mais importantes. Apesar de tudo, a infeliz durou o suficiente para que ele reequilibrasse as contas com a ciganada, não de todo saldadas com o cavalo, e se livrasse da amistosa oferenda de pisar as próprias tripas no pó da estrada. E depois de ter em seu poder o papel da dívida com todas as parcelas riscadas, e com a mula já morta e abandonada, com carga e tudo, numa qualquer berma serrana, ainda lhe deu para que comprasse um burro. Um gracioso burrico de cor acinzentada, principal herói a laurear nesta gesta em construção.
O burro, por incrível que pareça, nada tem de burro –, ao que dizem os livros sobre a matéria. É inteligente e despachado a aprender. Mais que o cavalo, por exemplo. Talvez de teimoso tenha um tanto mais que a conta, ou mesmo de obstinado, de ideias fixas, mas amigo e companheirão. E quando – segundo a narrativa ora exposta antes de escrita o vinho substituiu o jogo e se tornou ferramenta na potencial destruição do ainda arrapazado almocreve, foi ele, o jerico, que lhe prestou ajuda e o protegeu, o carregou e recolocou na vertical, de pé. É que esse esperto animal, a quem o desgraçado, para obtenção de lucro certeiro em apostas, obrigava a beber qualquer zurrapa a seu lado, ainda era novo e teria maior resistência à neblina dos efeitos. E há quem jure que ele sorria, o burro, assente no privilégio de se equilibrar sobre quatro patas motrizes, ao ver e ouvir fanfarronar, cambalear e despenhar-se, no precipício dos vómitos, toda aquela assembleia de imbecis apostadores em vergonhosa retirada.
Acabavam, muitas vezes, por dormir juntos, jumento e dono, na cama do primeiro, e também juntos sofriam os ardores da ressaca, até que a alva os devolvia à sina de largar as palhas e carregar daqui até além cargas alheias. E histórias mil e uma se fariam encadear, sempre com o vinho a consubstanciá-los, dono e jumento, num único ser indivisível. Dessas inúmeras passagens assinaláveis, no entanto, talvez a mais ribombante de todas tenha sido a última, se ainda hoje se sabe contada e cantada em quantos serões a relembrem como paradigma de abnegação e constância.
Era de noite e chovia. Regressavam, amparados um ao outro, de uma jornada medonha, através da serra, por descaminhos cuja descoberta nunca os mapas se atreveram a registar. Luz nenhuma, nenhum ponto de referência, nenhuma indicação deixada por anteriores explorações a tão atribulados lugares, se se não tivesse em atenção os uivos dos lobos com coragem administrada pela fome, e cada vez mais próximos. Cada vez mais e mais próximos de lhes impedir o sonho de dormir em paz nas palhas do estábulo. E de repente, por causas somente estranhas a quem ignore a corrosão de muitos anos de vinho, o almocreve tropeça num penedo e cai, já morto, aos pés do parceiro, que de imediato, sem o pisar, se lhe sobrepôs, para que o azorrague da chuva o não continuasse a zurzir. E assim também vieram a dar com eles, uns caçadores, uma semana depois, depois da chuva amainar, qual cavaleiro apeado por alguma flecha inimiga e seu fidelíssimo palafrém: aquele por baixo, sem vida, e este por cima, já quase, mas de pé.
Dizem alguns que os lobos terão respeitado um tão magnífico exemplo de amor e companheirismo, não querendo atacar o órfão. E outros retrucam que respeito uma treta, porquanto mais não seria preciso que o mau cheiro da putrefacção para os esclarecer e manter à distância.
O burrico em tom de cinza, sobrevivente à inanidade de tantos dias a eito e lançado no desemprego por decesso da entidade patronal, ver-se-ia reconduzido à vida activa como funcionário autárquico, tomando conta das crianças nos parques infantis da municipalidade, embora sob expressa proibição de beber em serviço.