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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 21 de março de 2007

LADO A LADO E DE LÉS A LÉS OU SÓ ATÉ QUE A VIDA ASSIM O QUEIRA

Conheciam-se e conviviam desde as fraldas. Fossem irmãos, e talvez nunca se parecessem tanto. Tivesse ele uma qualquer dor, e ela, afastada que estivesse, teria uma apoquentação em tudo semelhante. Não podiam passar um sem o outro, como soe pensar-se, de tal forma se identificavam e assumiam essa dependência em recíproco. E sendo vizinhos, de comum não tinham mais que a particular coincidência do nascimento no mesmo lugar e no mesmo dia, dizendo-se por isso condenados a crescer e a respirar lado a lado, a fingir em conjunto o que de mau e de bom lhes fosse imperativo fingir, e bem assim a repartir descobertas e segredos, como se crê ser legítimo em conjurados sem alternativa a antecipar-se, já que de maneira igual obrigados a desbravar iguais matagais de incógnitas no assalto à vida.
Daí que, afinal chegados àquela idade em que a embriaguez dos olhos bebe o raciocínio e vomita a ilucidez, tudo e todos nem considerassem outra hipótese que não fosse a de vê-los trocar alianças e permanecer de mãos dadas até ao estremo oposto da vida. Como admitir que alguém, fosse quem fosse, fizesse perigar uma junção tendente a valer pela solidez, se já comprovada há pelo menos três décadas? Ainda teria havido trémulos ensaios de intromissão, junto dela, vindo de alguns meliantes de olhos forasteiros e mãos ardilosas, que logo se veriam escorraçados e postos na estrada, a uma distância de léguas. E mais que viessem meter-se entre ambos.
Ora, como parece ser regra nestes passos preliminares, seria da competência dele a aproximação nesse específico sentido, o que muito o espantava, se de repente até parecia que todos aqueles anos de convergência e reciprocidade teriam sido em vão. Que nada deles ficara em cada qual. Que de um instante para outro acontecera a ruína das construções em comum, já edificadas desde a nascença. E que eram desconhecidos, pelo que necessitariam de recomeçar um progressivo processo de auscultação entre si, condicionando os feitios à conveniência de conseguir com os dois criar um único. Mas por quê tantas confusões impostas por uma oficialização daquilo que nunca antes lhes impusera a menor obrigatoriedade, se tudo até ali aparentava movimentar-se sobre nuvens de brancura ímpar e sempre com aragem a favor?
Da parte dela, entretanto, vislumbrava-se ardor, impaciência, incomodidade, algum nervosismo. Dir-se-ia mesmo um certo enfado. Ou um já nítido trejeito de desencanto a desenhar-se dia a dia, semana a semana, mês a mês, na prematuração das rugas ao canto dos olhos. Como se o apelo da carne, em justa medida, suplantasse em gritaria todos os sussurros de paz na mornidão do afecto até aí suficiente.
Pressionado pela máquina conjuntural, ele decidira-se enfim a atacar a problemática a partir da perspectiva de mais lógica sequência, fazendo-a sua esposa ante a lei e a grei, fazendo-se seu marido ante as mesmas entidades, qual de ambas a mais ditatorial na intolerância e na pressa. E pronto, lá deram eles corda às asas na aventura de esvoaçar mundo além, deixando para trás o sacramentado despejo de flores ceifadas em plena idade viçosa. Que vão e voltem depressa e bem–, dir-lhes-ia a parcimónia da praça, com solenidade, pela boca daqueles que naquele par, tido como ideal, tanto se reviam.
O casamento não aguentou mais que dois dias, o primeiro e o último, com uma noite em branco a separá-los antes que só a morte o fizesse.