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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 1 de março de 2007

DE NOITE TODOS OS GATOS FARÃO JUS A TER DONA COM JANELA

A noite, quando lisonjeira e boa amiga, terá a virtude de ser inesgotável em motivos e descaminhos de evasão. Tudo nela é concordante para que a mentira dos olhos se não descubra, enquanto a alva não trouxer na arreata a luz do dia, franca e brilhante como se deseja. E depois, mesmo que o rubor ainda ultrapasse as raias do pior dos incêndios, o da pele, as noites seguintes, conseguindo ser mais luminosas e aprazíveis que o dia pejado de bocejos, de pronto colmatarão tal rubor, como é hábito, e torná-lo-ão tão inútil como a derradeira confissão feita a um ouvido já cadáver. A quem é que pode valer toda e qualquer negação do brilho nos olhos, se só a noite, ao que se acredita e propõe entre quantos dela fazem terra de ninguém da escrita, o sabe perscrutar e manter vivo?
“Daqui a pouco, mais minuto menos minuto, daquela janela, uma vez entreaberta, há-de saltar um gato. E durante meia hora, pelo menos, a dona do bichano vai ficar sozinha, com a janela aberta, à espera do gato ou de alguém. Que tal?”.
As vielas, de noite, porque mal iluminadas e sem amostra de gente, dir-se-ão todas iguais. Esguias, obscuras, empedradas, malcheirosas, gemebundas, a escorrer humidade de décadas ou séculos sem sol que lhes acuda através da ponte, levadiça, por onde se atrevem à travessia do dia. E tão sinuosas como cobras e também como elas sempre prontas a picar e enlaçar e esganar, sem dó, até se consumar o esmagamento. Por ali se vive, ou se arremeda a vida e se vegeta. Por ali se morre e reconquista a liberdade de voltar à sombra de que se nasceu sem consulta prévia.
"Lá está ele, o gatarrão felizardo, a saltar para a rua. E todas as noites, esta meia hora de libertinagem é que ninguém lhe tira. Bicho com sorte".
Uma vez por outra, mais por bizarria que por sentimento ou pretensões lucrativas, escutam-se guitarras e vozes, melosas, meladas, e por vezes melodiosas como fontes de água fresca num deserto. E só é triste que as orelhas do endereço último sejam moucas, mal merecendo todo o empenho despendido por parte do remetente. Seja ele quem for e seja quem seja o aconchego tomado como alvo pelo arreganho cantador.
“Quanto à dona do gato – ainda não te disse –, já deve andar lá pelos noventa e tal”.