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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 21 de maio de 2007

DA ACÇÃO DE DESPEJO À DE RESTAURO COM SUCESSO E ACLAMAÇÃO

Em casa farta, farte-se a pança, que a sede é muita e a vida é escassa, quase instantânea. Quantos são eles? Uns vinte e tal, ainda sentados, de múltiplos feitios e comuns num ponto: os olhos enevoados como manhãs de Março, tirante o anfitrião, homem acautelado. Ele conhece a fauna que hoje se arriscou a meter na adega. Outros contubérnios, com maior ou menor afluxo de arrebanhados, já o instruíram acerca dos eventuais riscos corridos num chão molhado em demasia. E a noite vai alta, ainda que luarenta e convidativa a tomar-se-lhe o fresco em passeata amena, sem programa prévio.
Que tem uns amigos lá em cima – diz ele aos outros, de modo lento e mastigado, como se lhes sondasse a ânsia através das pulsações –, que adorariam beber um copo com eles, se eles, assim de repente, os quisessem visitar. Que o único problema a exigir atenção – acrescenta o prevenido palpador de pulsos ébrios –, será o da obrigatória deslocação a pé até ao sítio em causa, atendendo à estreiteza dos carreiros e aos transtornos naturais num piso térreo, entre pinhais e vinhedo.
A algazarra do aplauso logo o elucida: quais mosqueteiros do rei, um por todos e todos por um e tudo ao molho, abraçados e emparelhados que nem amantes em busca do equilíbrio na comunhão dos balanços, estrada adiante, que a sede é muita e a vida é escassa, quase instantânea. E o dono da ideia, com arte e paciência de pastor antigo, lá os vai tangendo entre as casas de outrem, onde outrem hoje não dormirá por mor do chinfrim daquele gado à solta.
Deixadas para trás as últimas janelas acesas pelo pasmo, eis que principiam as verdadeiras agruras por escusos caminhos de gravilha e pó, e sempre a subir sem se saber até onde. Que é já ali mesmo, após este morro, que estão quase lá –, suaviza quanto lhe importa, com firmeza e convicção, o guia da cáfila em peregrinação pelo deserto afora. Que os compadres para onde eles vão vão ficar encantados, decerto, com tanta gente, assim, a entrar-lhes na adega e a provar o vinho. E que já são só mais uns cem metros –, mente o mentor, exemplificando a cadência dos passos na vanguarda de um cortejo desconfiado e trôpego, mas sempre a andar.
Cerca de quinhentos metros depois, afinal, com o rebanho a dar sinais de inquietude e rebeldia, descobre-se, denunciado pela luz do infinito, um muro branco de tão bem caiado, alto e longo e com um feroz portão de ferro implantado a meio de tanta brancura: é o cemitério, sim senhor, como está à vista, apesar da escuridão aqui em volta. Dizem-no, além do súbito frio expresso em arrepios, a caveira e as duas tíbias cruzadas no pináculo metálico da frontaria.
Assarapantados e encharcados em suor e raiva muda, se bem que bem mais sólidos, agora, ao assentar os pés nos percalços da estrada, os ainda zonzos caminheiros da noite suspendem a jornada e entreolham-se, interrogam-se, enquanto o pastor que os trouxe se aproxima do muro, e pelas grades do portão, entreaberto em convite a qualquer hora, se põe a espreitar as campas, o tremelique de lamparinas e velas, a mentirola das flores ressequidas e dos epitáfios, a abundante sementeira de cruzes sem colheita posterior que mereça o esforço da cava, a capela derradeira e os já crónicos ciprestes por ali espetados como falos em inequívoca erecção para exemplo.
“É tarde de mais. Os meus amigos já se deitaram todos”–, diz o mestre de cerimónias à assembleia de credores reunida em volta dele, porque a sede é muita e a vida é escassa.
Quase instantânea.