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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

SOBRE A LICITUDE DE UM DESAMOR DE PERDIÇÃO FORA DOS LIVROS

Por um suspiro de paz, dariam a vida. A história do conflito, arrastada desde há gerações, é um decalque de tantas outras que obtiveram de velhos mestres a mumificação literária e estão, ainda, a condimentar o presente. Também esta pode ter fermento na recorrente sementeira de ódio entre famílias ricas, poderosas, gananciosas. Também ela deu azo a paixões desenfreadas, de um e outro beiral, com a mocidade a tentar sem êxito ser maior que a ruindade macróbia, e resolvidas a tiro, que a soco dói. E também se tornou motivo de divisão e formação de clãs, com o asco de lá do alto a consubstanciar-se em paradigma e a precipitar-se, muralhas abaixo, até ao nível ínfimo do lodo no fosso circundante.
Hoje, das duas famílias rivais, como se uma praga as tivesse corroído e já lhes desse a ver a foice final, ainda restam dois descendentes, um de cada qual: dois velhos feios, horrendos, daqueles cuja idade nunca se diz nem se pergunta, a quem a solidão empederniu o ricto facial e o adiantou como estátua tumular a usar um dia. E reduzidos a esse estado de miséria vulgarizado em ancestrais casarões, brasonados mas sem saneamento, água canalizada, ou mesmo luz eléctrica, e onde ratos e aranhiços, gordos e fartos, morrem de velhos. Alões e cavalos? Traquitanas e trompas de caça? Librés ou cabeleiras empoadas? Tudo se foi na voragem, tudo voou sem asas nem ventos céus afora, como trastes obsoletos de que nada cheira na lembrança ou no oco das algibeiras.
Irredutíveis, cada qual em seu castelo outrora dourado e ora em ruína absoluta, tempo tiveram de depurar e sublimar um tão velho ódio até aos limites. E terão ainda como derradeira ambição não abalar para a viagem última sem o outro o ter já feito. Uma só hora que seja, que seja na hora seguinte àquela em que o inimigo congénito tiver zarpado.
Cansados de esperar um pelo outro, tiveram em simultâneo a ideia de se enfrentar em duelo, até à morte, à moda antiga, ou quase: para que ninguém comprometesse a normal evolução deste projecto comum até estar consumado, dispensariam as testemunhas e as velhorras formalidades para a oficialização do acto. E como única condição prévia, por ambos interposta e juramentada com aprazimento e aplauso, fosse qual fosse o resultado da contenda, nenhum dos dois sobreviveria sequer um minuto ao adversário derrotado.
Concordantes ainda na escolha das respectivas pistolas como armas a utilizar no duelo, e combinando disparar uma só vez à voz de fogo, carregariam cada uma delas com duas balas: ao vencedor, estando por terra o vencido, competiria servir-se do segundo tiro para que a condição prévia, proposta e aceite pelos dois, se fizesse cumprir.
E porque, numa história como esta, pendente sobre o abismo melodramático, não deixa de ser legítimo desejar-se um final feliz, será sempre gratificante saber que aqueles dois velhotes ranzinzas não chegaram sequer a carregar as armas: à última hora, como alternativa, acharam por bem decidir a questão a soco e a pontapé. E então, lá acabaram por morrer ao mesmo tempo, de colapso cardíaco ou próximo, rebolando nas ervas, muito abraçados e a rir, como se desde sempre tivessem sido bons amigos, à gargalhada.