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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

RETRATO INSTANTÂNEO EM MAQUINETA DE FEIRA A PROPOR COMO PASSAPORTE

A boina, informe e descorada, a descambar para a esquerda, à laia de cogumelo apanhado além da hora, mal pousada sobre uma cabeleira de maestro no desemprego, sujas de branco as melenas esfarripadas, atadas na nuca por um pedaço de cordel; os óculos, lunetas de agiota a aguçar as unhas, encavalitados meio palmo abaixo dos olhos, ou na ponta de uma penca rubicunda, judia genuína; a incontornável beata amarelenta, mais tempo apagada que acesa, pegada ao lábio inferior, como se já ali se propusesse à nascença; a expressão da boca, trocista inata também, com provável ascendência onde o nariz teve berço; e a barba, já de vários dias sem gume, a lembrar cristais de açúcar, ou de sal, entremeados pelo negrume de grânulos de carvão em perda para a alvura dominante. E com o já denunciado apoio branco de cinza das farripas, abaixo da calva no cocuruto que a boina oculta, será a muito breve espaço o domínio total.
O casacão, tirante a verde terroso, tão coçado como vasto, de ombros descaídos pela nitidez do conteúdo a menos e ainda pronto a tapar o que tapado se queira, algibeiras largas e profundas como credos sem crentes e crença a haver; as mãos, não tagarelas, penduradas ao lado do corpo, como que esquecidas de si no extremo dos braços, curtos e desde sempre despidos da ambição de chegar mais alto que o crânio, esse penedo nos píncaros que nem pela neve se sentirá considerado e ouvido com atenção, não obstante a obstinação de antes quebrar que dobrar; as calças, de bombazina já sem cor identificável, quer no gelo invernal quer no oposto, carregando nos bolsos, com o desassossego das mãos, o vácuo e o arrepio de se saberem mais que rotos; e os pés, agora sempre calçados por umas botas de couro à maneira de ontem ou antes, apesar de já malcheirosas aquando da estreia possibilitada por doação gentil, a consumar o quadro ao nível da base em epopeia perceptível à distância.
Conta a lenda envolvente, numa das duas versões postas a voar entre cada duas aparições do legendado, que o mesmo é rico e afidalgado e dono de herdades fabulosas e mansões. E até terá sinete de ouro com o brasão da família. Nunca ninguém lho viu.
Já a outra versão efabulante, porque avessa ao vil material da pompa beijoqueira de anéis, entre vénias e salamaleques, pretende-o objecto de traição, perpetrada por um roliço par de pernas condenado à fuga eterna, sendo a saga complementada pela notícia que faz dele eterno perseguidor, sem desfalecimento nem proventos noticiáveis.
Qual desses dois itinerários interpostos como realidade vivida é mais fantasista? Nenhum deles se aproxima sequer do que aquela boina, de veludo pardo, aos gomos irradiantes e feita por mão amiga em oficina de alfaiate, já se permitiu percorrer na vida e além dela. Só que andar por aí, como quem mexa e remexa em gavetas de outrem, equivaleria ao repto de decifrar um labirinto de olhos vendados. Desafio perdido, logo à partida, atendendo ao melindre de palpar e ouvir segredos cujo enredo já doa muito antes dos ouvidos.
Um derradeiro pormenor no respeitante à indumentária desta figura emblemática nas conversas a construir ao serão: às costas, de correia a tiracolo, vai e vem e dorme com ele a guitarra, que se recusa a tocar em público. Nunca ninguém lha ouviu. Pois como, se cordas não tem, nem nunca as teve ou terá?