http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg
A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

HISTÓRIA DE NATAL SEM VACA E SEM BURRO MAS ALGUNS LATIDOS VELHOS

Começam agora a cair os primeiros pingos. Pode ser que levem o frio, e ele lá se perca da viagem de regresso. O pior é se por cá se instalam os dois, frio e chuva. Nunca fizeram grande par, isso não. É mais uma tarde consumida a contemplar, através da janela, a insignificância da bicheza humana, quando colocada perante a iminência de temporais com algum calibre. Na serra, longínqua embora, estará a nevar. E por aí, qual manifesto de denúncia, tanto os arrepios de penugem íntima como as castanholas dos dentes vão impondo o ritmo.
Não é muita a lenha, junto à lareira. Portanto, para que o conforto da imaginação arda a preceito, sem proclamar a necessidade de aquecer os dedos e o que intentem com o bafo, justificar-se-á o esforço, antes que chova deveras, de correr ao barracão e trazer um bom carrego de cavacas, pinhas, caruma, gravetos, carqueja. Tudo o que num relance se conjugue em labaredas e brasido, e logo se explique em sonolência e langor a elevar-se ao infinito. E que quase de imediato, após a pena da recarga de lenha, leve a desvanecer a tarde e a impor as trevas em torno da casa, do quintal, da povoação. É a paz mítica da noite a cair de manso por cima de quanto respire e sobreviva, pedra que seja, eco anterior ao grito original, roupa interior pendurada num estendal de improviso entre duas árvores, lenço esquecido no muro por nádegas mais apressadas, regato previsível com a chuva.
A cadela, de orelhas espetadas, dá sinais de inquietude. Anda algo na rua, ou alguém se aproxima, ou será o vento? Uma casa situada num ermo assim, separada das outras por algumas centenas de metros, dá que pensar a quem ali apareça, vindo de fora, e desconheça os donos, qual a sua origem, qual o mester de sustentação, e porquê a distância relativa à aldeia de que ainda é parte. Seja lá quem for, seja o que for, gato, cachorro forasteiro ou gente de sombra na sombra, melhor será que passe de largo, sem parar, ou sai chumbo grosso. De nariz no ar e orelhas sempre em riste, a cadela cicia, geme, abana a cauda, arranha o tapete. Já está velho e coçado, esse tapete. Está cansada e velhota, a cadela. Mas lá se soergue, a custo, e devagar encaminha os passos até à porta da rua. Ali à beirinha, na face oposta―como ela sabe―, há-de estar alguém ou alguma coisa com vida, algo que vibre e lateje e se dê a ouvir, ainda que durma.
No primeiro dos quinze degraus, para quem desça, ou no último dos mesmos, para quem os tenha subido, está um cesto de verga. Dentro dele, o óbvio embrulho de mantas e fraldas e caca amarela e vagidos mínimos de alguém que acabou de acordar.
É que a cadela ladrou, quando lhe pareceu que ninguém a ouvia.