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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DO OLFACTO A REVELAR MAIS LUCIDEZ QUE OS MAIS SENTIDOS À ESCOLHA

Imagine-se porque a imaginação não tem baias delimitantes da marcha em qualquer direcção um corpo sem corpo. Nada mais que um pedaço de gente, deitado de costas, numa ravina à beira da estrada, e cercado de lixo e moscas, perceptível por umas calças de cor parda, talvez mesmo acinzentadas, e uma camisola de lã em tom próximo. Assinalando uma das pontas do volume, um boné, também ele ruço de muitas chuvas e sol sem substituição atempada. Na outra ponta, umas alpercatas de pano, coloridas pela terra nocturna das mil e uma jornas a monte, tal o aspecto ensebado, repugnante, dessa amostra de calçado que de calçado nunca teve grande coisa. Por debaixo, ou lá por dentro de tudo, nada. Apenas o inequívoco feitio de um corpo, que na verdade lá não está, dado pelo formato das roupas e pela posição do boné e das sapatilhas, e confirmado pelo peso: aí uns mais de cem quilos de matéria imaterial, ou o que se diria um homenzarrão, ainda novo, com tudo à vista de todos e sem nada a ver-se. Não trazia roupa interior? Nem umas cuecas, ou um par de peúgas tão malcheirosas como as sapatas de larápio de galinhas no activo?
Até os jornalistas, aprendizes de olhos febris e língua arfante na transmissão, em primeira mão, da notícia, não sabiam dar conta do achado, se resumido a umas calças de cor parda, um camisolão de malha, umas sapatorras emporcalhadas para lá de qualquer nariz distraído, e um boné velho e coçado. Como gritar ao mundo acerca do conteúdo invisível, cuja forma era evidente, cujo peso de chumbo não enganaria ninguém, cujas características físicas se calculariam como as que vulgares se farão num homem grande e ainda novo? E como fotografar o que se lá não vê? Como filmar e enviar mundo afora algo que à própria palpação se escapa, que ao olhar impede a prova de existência, e que só ao nariz se revela como utente das parcas e pardas peças de roupa, daquele boné desbotado sem que se lhe descubra a cabeça portadora, e sobretudo de tão sebentas alpercatas, apreensíveis à lonjura de anos-luz?
Já se inquiriu e concluiu não haver nenhum desaparecimento de nenhum dos hospícios oficiais, nem da penitenciária, nem mesmo de qualquer albergue de indigentes, e nem de alguma casa particular, abastada ou penuriosa. Mas desaparecimento de quê?– perguntar-se-ão os mais cépticos, desconfiados das campanhas propagandistas em que o latão passa por ouro de lei e é rei o preservativo, em detrimento do amor.
É certo que logo pairaram pelo ar os publicitários, deitando a mão à ideia e com ela promovendo marcas multinacionais de costura e de sapatos, desportivos e de ir à missa, e bem assim de bonés, chapéus e boinas. Conteúdo pressentível à custa do continente–, é o lema que vai vendendo a quem pode o que a maioria não compra, a não ser a prestações e na mentira dos saldos, quando já fora de moda.
Indeglutível, todavia, é o mistério da roupa cheia de nada, do boné sem calva a ser protegida da troça de olhares cabeludos e algum frio, e daquele pivete de morte sem pés sujos que lhe dêem paternidade e vergonha. Acontece que o peso é flácido, obrigando ao esforço em dobro dos braços contratados, a fim de se lhe dar recto destino e assim fugir à verrina de crónicos especuladores, sempre atentos a desatenções.
Optou-se por enterrá-lo, pois claro, em caixão semelhante ao de qualquer mortal na hora de ser pão de vermes, em campa rasa, sem flores, sem epitáfio, sem cruz.
E só depois do enterro se perguntaram: –“Estaria morto?”