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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

ONDE E QUANDO O PRECONCEITO VALE TANTO QUE ATÉ MATA

Como traineira que chegada à barra não consegue entrar por malevolência da borrasca, assim ele hesita e gagueja quando à frente dela se vê, de mãos apatetadas nos bolsos e olhos de gatas no chão, ao pé dos pés e da sombra.
A denúncia em tom escarlate das faces, a demasia de saliva à flor das palavras por dizer, a comichão capilar a pedir escova de arame, e o terramoto interior sob escala mensurável em si mesmo a olho nu, tudo aparece ao de cima, como sendo obra de ocasional recorrência, quando o ensejo é bastardo e o põe à mercê daquele riso a bambolear malvadez, daqueles tiques de mordedura envenenada por prémio, daquele ar de vitória sem qualquer luta aprazada em campo neutro.
De cada vez que ele a percebia à distância, e tantas eram que nem eram coincidência, jurava para dentro nada lhe dizer ao passar por ela. Não a olhar sequer. Fingir ignorá-la. Como se de todo a desconhecesse, nunca a tivesse visto. Contudo, mal a lonjura se encurtasse até ao pânico do rubor embandeirado nas maçãs do rosto, logo os balbucios e a aflição dos olhos se tornavam coro misto a várias vozes, com o baixo contínuo de algum naipe incorpóreo de violoncelos a fazer troça. E ela ria, pois ria, melómana atenta a tão óbvio falsete posto em pauta e dado a ouvir por um só solista.
Proclamam os livros que ódio e amor são irmãos gémeos, de tão parecidos como próximos na decantação. E ele, por força de tanto a amar, chega a odiá-la. E tanto invectiva o acaso de a encontrar no caminho, como se congratula ao tê-la adiante dos passos que a seguir decalcará, gago e trôpego mas crente de que ainda a terá, um dia, à sua espera, tal e qual como ele, arvorando alheamento, hoje a espera a ela.
E se a lotaria o bafejasse? E se uma súbita rajada de sorte lhe impusesse asas nos pés e o empoleirasse nas nuvens? E se ao olhá-la não a olhasse como quem suplica atenção, mas como quem a distribui a quem atenção lhe mereça? Benemerente e magnânimo na hora da fortuna, decerto lhe perdoaria tantos sorrisos escarninhos, tantos olhares viscosos em provocação, tanta indiferença no atinente à paixão por ela que ela saberia a agrilhoá-lo desde a nascença.
Foi a ela, todavia, que uma nunca sonhada herança bafejou, libertando-a de quantas amarras costumam prender ao cais da miséria quem nessas águas navegue. E zarpou para longe, como se adivinharia, mal pôde dispor do pecúlio e respectivo caudal de benfeitorias a usufruir. E mal se livrou da suspeita de homicídio, que quase como consequência a enredou e aos usuais desconchavos da investigação policial a fez sujeitar.
Grande azar foi, na realidade, que lhe tivesse dado uma coisa, a ele, quando ela, com um sorriso de maviosa frescura, se lhe apresentou em casa dos pais a pedi-lo em casamento.