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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 4 de abril de 2008

NO VÃO DA MEMÓRIA A VIAGEM PROMETIDA PARA QUANDO MAIS LHE APROUVESSE

Percebia-se nos olhos dela, em permanência, uma sombra. Era como se a luz do dia pendesse a tempo inteiro para o ocaso, e ali pousasse a descansar antes do mergulho no fosso. Fosse qual fosse a disposição, o estado de espírito, o sentimento a contar. Ou quaisquer que fossem as circunstâncias, os circunstantes, as expectativas de consecução de um ou outro plano mais pesado por incógnitas. A sombra, essa é que se não dissipava, não se deixava iludir pelo sorriso, tranquilo sorriso, em resposta à lanterna de alguns gracejos de amigos, esforçados mas vãos, sem voltagem que os acendesse adiante de si próprios e nela se fizessem valer como energia motriz.
Oriunda de boas famílias ora em colapso, ostentava da ascendência o porte olímpico, altivo, incapaz de se convencer da realidade palpável a quilómetros de alvitres. Deusa em descida, muito lenta, silenciosa e nunca como tal reconhecida, pela escadaria traseira do templo, longe de olhos atónitos e acréus por pressão do medo. E daí, a ser corolário sem prenhez em asserções, conteúdo e continente, a sombra. Asas de milhafre a pairar sem o mínimo movimento, a sombra, sobre a névoa vespertina, acima dos demais predadores em campo e presa deles, lá no alto, onde outros olhos também se farão chegar.
Um curso escolhido à toa e à toa acabado, nesse febrão pusilânime de namoricos vadios entre directas bocejadas e lunetas de ceguinho pelo dia adentro; a subsequente função desconsolada na empresa paternal já com água pelo pescoço; o casamento combinado, para anteparo da penúria, e os dois filhos, nados-mortos, talvez porque fornicados sem amor contabilizável nem vontade; o óbvio divórcio e a óbvia ruína do império familiar, carregando na arreata o ineditismo do desemprego e carestias apensas ao desnível zero dos olhos; e agora, como praga a nunca mencionar sequer a si mesma, o lavradio da idade, o fantasma dos primeiros sulcos a alongar as pálpebras em delta, a alvura capilar como geada matinal sem sol que lhe dê cova, a opacidade sazonal das lentes a afunilar-lhe o território onde arriscar os pés, o quase rangido de portões velhos nalgumas articulações, o inchaço de tudo ao cair da noite, a gradual consciencialização da morte a atravessar-se na rota a caminho de sítio algum sem regresso. E, à laia de breve apontamento de frase a escalpelizar depois, a sombra nos olhos, pertinaz, macabra, inconfidente. Sombra por sombras urdida, nem mais.
Ora, porque não haverá mortal que se preze de não ter já sonhado dar em vida a volta ao mundo, ela sonhou apenas com meia volta, a partir de cá e por lá se esfumando, na face oposta do globo. Especula-se que nem de tal maneira se livrou da sombra nos olhos. Ninguém por estes lados, no entanto, o poderá confirmar ou pôr em dúvida. E quem sabe mesmo se num destes dias, qual andorinha indiferente ao porquê das asas, ela não lhe dá, a sombra, para tornar a casa? Não se esqueça ela, a sombra, de que é no chão, na verdade, o lugar dela. Nunca no ar.