http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg
A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 8 de março de 2008

ENTRE O ANTES E O DEPOIS HAVERÁ SEMPRE UM RISCO FEITO NO CHÃO

O tiro ouviu-se, de ponta a ponta da rua. Súbito. Nítido. Com rigor de bofetada em face fria. Antes, ficou o silêncio sem mazelas até então, e depois dele, abatido o eco, um silêncio ainda maior. Apesar da pouca luz circunstante como reforço, porque é obrigatório em casos tais ser de noite, ninguém o terá ouvido. O conglomerado dos homens justos dorme e ressona entre grunhidos de paz, sem pressa nem vontade de despertar e voar da cama à força do estampido de notícias como esta, pespegada, mal amanheça de novo, em todos os pasquins televisivos e colaterais radiofónicos, já que os demais, de papel, necessitarão no mínimo de mais um dia para desenovelar o enredo: brilhante e ainda jovem advogado, proeminente figura pública, marido exemplar, bom companheiro e colega, filantropo e solidário ante o infortúnio dos da mó de baixo, tribuno voluntarioso na defensão apaixonada dos mais avessos à riqueza, cidadão cumpridor de quanto lhe cumpriria, enfim, pôs termo à vida com um tiro de pistola.
Enquanto não amanhecer, porém, e não atroar os círculos a macabra descoberta, o corpo ali se conservará, inerte, estático. Como se o sono assim o encontrasse e o deixasse ficar deitado no soalho envernizado do escritório. Nas milhentas prateleiras mal arrumadas de propósito, nas estantes de vidro até ao tecto, em cima da secretária, em quantas cadeiras lá houver, no cabide, no bengaleiro, em tudo o que seja lugar onde e como, e também eles mais silenciosos agora que antes do tiro, amontoam-se quantos códigos há, livros, pastas, processos sem idade mensurável, embargos, procurações, petições, atestados de presença, certidões honoríficas, diplomas, medalhas, caricaturas, fotografias de grupo, da era estudantil, emolduradas e penduradas na parede. Todo o espólio tido por normal num ainda jovem e brilhante advogado, em bem sustentado fôlego de ascensão, pleno de vida. O que dizer, o que invocar, como interpretar, a que dados deitar mão para se perceber o desequilíbrio de assinar de cruz um gesto assim?
Pela janela, antes de quem quer que seja, há-de entrar o sol. Mas não iluminará a estupefacção de quem chegar depois. Nem será chamado a prestar depoimento. Ele não estava lá, de facto, àquela hora, e disso tem provas: as gelosias, metálicas, estão encerradas. Quase nenhuma luz, se a houvesse, natural ou de artifício, as conseguiria trespassar e esclarecer a escuridão envolvente de qualquer ideia fixa. E a verdade é que o tiro só o ouviu, no mesmíssimo momento, quem o deu. Tarde de mais, todavia.