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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 12 de março de 2008

QUAL DÉDALO INVERSO POR TEMOR AO PESO DOS ANOS NAS ASAS

Entre tranquibérnias e correlativos eclipses para efeito de sutura dos efeitos, o velho trampolineiro já não sabia, nem isso lhe apoquentava a convicção carregada pelos olhos, se até à data vivera mais tempo lá fora, se cá dentro. Tantas urdira e alinhavara e cosera e se encorajara a envergar, que há muitos anos lhes perdera a conta. “Só a primeira é que sangra e faz doer”—, chalaceava o farsante ante os discípulos, em trejeito demorado, como se cada palavra pesasse mais que a anterior e necessário fosse arrastá-las, uma a uma, sob a certeza de olhares à espreita lá no alto, nas torres de vigia, em qualquer janela debruçada sobre o pátio interior, em algum bigode a empertigar-se sobre divisas de pano, mais rasteiras de baixo para cima.
Um pátio de prisão, calcetado ou em terra batida, apesar de varrido e alindado ao pormenor para completo usufruto dos residentes, nunca deixará de ser um lugar abominável. Uma praça de touros, nem mais, onde lidadores e lidados se misturam e confundem, trocam de facção ao menor bosquejo de birra, resfolegam, marram, dão coices. Por um cigarro negado se vaza um olho ou se põe a tripa ao léu, sem pruridos, ou se chega em verdade a matar.
Após ver-se aceite como natural a ocorrência de entradas e saídas do aljube todas, em qualquer dos dois sentidos, com direito a festim e bandeira e toque de clarim—, o tão famigerado bilontra ascendera já ao supremo cadeirão de patriarca, consultor, conselheiro, confidente e juiz em causas ínfimas, à conta da idade contada e da experiência a contar, fundamentada nas mil e uma façanhas de assombrar mortos e remortos: vendera rebanhos de que nunca se ouviu um balido; fez-se passear em automóveis luxuosos, cujos donos nem desconfiariam do empréstimo; negociara e construíra casas, mansões, palácios, bairros inteiros, sem que dos caboucos se denunciasse uma pedra; ganhara e transaccionara, de imediato, dezenas e dezenas de primeiros prémios da lotaria; chegara a ser marinheiro mercante, sem farda, sem bote e mal sabendo nadar; e amara e desamara, casara e descasara, e, como láparos, por aí fizera parir ninhadas e ninhadas de potenciais burlões como ele, assegurando, pois, a continuação da espécie. E toda a gente o procurava e lhe escutava o rezado, do mais imberbe dos guardas ao padre, dos pilha-galinhas aos cadastrados sem sequer ocasião de dar umas passeatas pelo pátio, bem como ao médico, aos enfermeiros, ao boticário e ao próprio director da prisão.
Com três quartas partes do tempo de validade já consumidas, o estar dentro ou fora, mesmo para um velho trapaceiro sem maior ambição que a de se saber respeitado, já não será indiferente: os anos não são os anos que tinha quando não tinha tantos anos e as artroses não lhe atulhavam os tímpanos com queixinhas. Alguém se encarregara de o avisar de mais uma ordem de libertação a breve prazo. E ele concluiu ter chegado a ocasião perfeita de fazer algo de vulto. Alguma coisa de estridente, que nunca mais o obrigasse a cair no pasmo da rua e a ser alvo de olhos jovens, trocistas, malevolentes.
Matou o padre.