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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 20 de maio de 2006

DOS PENITENTES E DA PENITÊNCIA SEM PASSAR PELO PURGATÓRIO

O padre, já na sacristia, livrou-se das vestes sacerdotais e saiu para a rua. Aquele cheiro a cera, aquela semiobscuridade, aquele ar pesado da talha e dos castiçais, aquele toque de sadomasoquismo comercial no sofrimento expresso pelas imagens, tudo aquilo ele repudiava ao chegar a hora de bater asas e voar sem destino. O fim da missa, longe de lhe trazer paz e lhe permitir o reencontro consigo entre silêncio e meditação, dava-lhe corda às ideias e devolvia-o, pois devolvia, a si próprio. E um homem tão novo ainda. E não se livrava tão-somente da sotaina e dos paramentos: até a existência de Deus, o seu patrão remoto, logo se veria posta em causa, mal ele se metesse no carro e arrancasse em velocidade, sabe-se lá para onde.
"Boa-tarde, senhor padre”–, ouviu ele, vindo do alto, talvez do céu. Mas o céu sempre fica um tanto mais acima que o capcioso sorriso emboscado à janela do primeiro andar. Reconheceu a voz sem grande esforço. Ainda na manhã desse dia a ouvira, através da gradilha, na penumbra do confessionário. E que coisas lhe tinha ouvido, Senhor. Até os pêlos da alma se lhe arrepiaram e lhe sobrecarregaram a mão ao prescrever a dosagem de penitências.
Aceitando o convite, subiu. E quando, quase uma semana depois, lá regressou ao seu posto de trabalho, ali nas cercanias serranas, tinha perfeita consciência de que a consecução do céu nunca passaria pela oração, nem pela subida das altas serranias em volta, mas apenas e só pelo santo sacrifício de trepar, em corrida, os degraus até ao cosmos daquele sorriso pacificado à janela do primeiro andar.