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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 28 de maio de 2006

O ESTRANHÍSSIMO CASO DO SUMIDOR QUE LEVOU SUMIÇO

O morto teria dito, ainda em vida, que não gostaria de ser enterrado ali. Naquele cemitério e naquela campa, onde a mulher esperaria por ele há cerca de vinte anos.
Os filhos, dois, porque não perceberam as razões do velho, trataram de tudo como se ele nunca houvesse dito nada acerca do assunto. E ainda houve quem chamasse a atenção do padre, no sentido de que a última vontade dos moribundos não deve ser ignorada. Mas o padre limitou-se a encolher os ombros, em nome de Deus, e a dizer que os filhos já eram adultos, bem casados, homens de bem. Saberiam como proceder em conformidade. O programa previsto cumprir-se-ia.
Foi dito ao coveiro que reabrisse a cova, retirasse o caixão da mãe e guardasse as ossadas noutro caixão, mais pequeno, que seria outra vez enterrado com o caixão do pai. No relativo às saudades expressas no epitáfio, seriam repartidas, a partir daquela data, por ambos, papá e mamã. E que um dia viria, mais tarde, em que seriam eles, os filhos, a deitar-se ali, para repousar até à eternidade. Quando tudo ocorra em seu tempo exacto, tudo estará bem quando bem acaba.
Não acabou. Ao levantar o caixão já ali residente há vinte anos, meio desfeito, o coveiro verificou que dentro dele nada havia. Ou melhor: havia calhaus, torrões e vermes. Nada que tivesse tido vida e sangue e ardor carnal, e que agora se resumisse a uma caveira sinistra e a um montão de ossos sem nexo nem lugar próprio.
Relembraram alguns, os mais velhos, que de facto nunca tinham visto a morta depois de morta, aquando do funeral, há vinte anos. E que o caixão exposto no velório sempre estivera fechado. E que ninguém estranhara peso a mais ou a menos no transporte à mão, já dentro do cemitério, até ao fosso final.
Não se trataria de um caso de homicídio qualificado, perpetrado pelo marido, com ocultação de cadáver? E o médico e a certidão de óbito que engatilharam uma embolia pulmonar como causa de morte? E a agência funerária que vendera a urna e tratara de preparar e vestir a morta? Tudo questões de pormenor, sempre fáceis de ultrapassar no mercado negro dos subúrbios civilizacionais.
E se se tratasse de um evento miraculoso, como o de Cristo, depois da inglória morte no Calvário? Teria ela ascendido aos céus de corpo e alma, tal como se diz ter acontecido, há quase dois mil anos, ao filho de Maria e de José, carpinteiro, seu brando e resignado pai adoptivo?
A polícia, posta em campo, tudo farejou, tudo revolveu, mas nada encontrou. E se não houvesse crime de morte? E se se reduzisse a um mero caso de fuga disfarçada, para salvaguarda de brios malferidos, com um funeral a sério? Fosse como fosse, a quem pedir contas, hoje, vinte anos depois? E se não morreu, há vinte anos, onde estaria ela agora e a fazer o quê, longe dos filhos?
A estranheza atingiu o seu auge, entretanto, quando o mais novo dos dois filhos veio a morrer, de acidente, ao cair num poço sem água. Uma vez retirado do poço e após o cumprimento das formalidades legais, seria enterrado na campa familiar. Seria, sim senhor, mas não foi. Acontece que do corpo do pai também lá não havia sinais. Sequer um cabelo ou um botão de camisa.
Começando já a preparar o desfecho desta espécie de história trágico--marítima em versão terrestre, informe-se que o outro filho, o mais velho dos dois que eram, num curto espaço de tempo enriqueceu a vender medalhas com as fotografias dos pais e até do irmão, a dar entrevistas em exclusivo a todos os jornalecos sensacionaleiros, a participar ao vivo em programas radiofónicos e televisivos de culto igual, como e enquanto derradeiro bastião de uma sagrada família, e a receber, lá em casa, excursões sobre excursões de romeiros àquele já afamado lugar de milagreira propensão.
O pior foi quando, uns meses depois, caiu uma ovelha transviada do rebanho no mesmo poço onde tombara o mais novo. A ovelha não se finou do trambolhão, e tanto baliu, que a foram tirar de lá. Na lama do fundo, porque chovera há pouco tempo, estavam duas caveiras, já limpas de pele e de ideias, e uma terceira, em já adiantado estado de decomposição do que em vida teria tido por fora e por dentro dela.
Claro que o mais velho foi preso e está a pagar pelo crime em que se tornou sócio do pai, ao arrancar-lhe, num dia de vinho ao nível dos gorgomilos pensantes, o segredo da morte da mãe.
Mas os peregrinos continuam a afluir àquele santo lugar.
(Escrito em Guiães, aos 27 de Maio de 2006)