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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 9 de junho de 2006

DA TOLEIRICE DE SE USAR A ESQUERDA SEM SE SER CANHOTO

Era só um homem só, com quilómetros de distância no olhar. Fazia-se sentir uma estranha aragem, a cheirar a maresia e a pez dos barcos no cais, mesmo no pino do estio e nas mais desmemoriadas vertentes do interior, sempre que ele entrava numa povoação. E todas as pessoas espreitavam o céu e logo se apressavam a fechar janelas, mal o viam. Passava ele, passava a brisa. E tudo voltava à normalidade da miséria e concomitante fingimento de uma alegria trigueira a malhar de sol a sol. E vai de reabrir janelas, sem se cuidar com os olhos de quem da rua pretendesse dar fé do recheio ou da sua falta.
Vagueava ao acaso do estado em que trouxesse os sapatos. Enquanto as solas não se demonstrassem permeáveis aos rigorosos argumentos do terreno, perdia-se entre desfiladeiros e promontórios, sem sequer estrada previsível pelas campanhas eleitoralistas. E se se descobrisse prantado em terra, embora com os pés tapados por cima, preferia as suaves vias romanas, de grandes lajes polidas por milénios de rapina; ou os areais à beira-mar, onde só o lume pisado lhe imporia na ideia a urgência de logo conseguir novos sapatos, ainda que velhos e já meio gastos por outros pés, que não dele.
Alguns, porque escassos de imaginação, diziam-no antigo marinheiro e comandante de vários navios naufragados por torpedos do inimigo. Outros, especulando noutra onda, punham-no como desertor em fuga perpétua, por vergonha, e não por medo, de ainda vir a ser fuzilado. E outros, os menos votados à leitura de românticos e afins, tinham-no como um vadio, um vira-latas sem préstimo, um preguiçoso, em fuga perpétua, sim, mas do trabalho.
Os catraios adoravam sabê-lo por perto deles: construíam moinhos de papel e aproveitavam o "milagre" da brisa para os experimentar. E chamavam-lhe nomes, de longe, só para que ele fingisse persegui-los com o olhar de quilómetros sobre quilómetros de distância. E era o “papão” para os mais miúdos, na hora de não quererem a papa ou de irem para a cama sem que o sono fosse com eles.

E agora, uma paragem técnica: o que há-de fazer um contista num caso destes, se se mói a pensar em como encerrar a história? O mais justo é matá-lo, num duelo ou de acidente, atropelado ou a rir-se das partidas que pregou quando era moço. Matemo-lo, pois, e a tiro.

Achou ele a pistola num ermo, quando por detrás de silvas se baixou em busca de não ser visto de calças na mão. Mas não para dar largas à tripa e se esvaziar de rancores: estava a bater uma bela pívia, com os pensamentos ferrados numa mulheraça com quem se tinha cruzado horas antes. E foi aí que viu a pistola no feno. “E se ela até estivesse carregada?”– cogitou na altura, em voz alta, enquanto esticava a mão livre, a esquerda, e pegava nela.
Apontou-a à cabeça e pensou, antes de lhe puxar o gatilho, que para fingir o disparo também diria “pum” como os putos, quando de longe disparavam contra ele. Mas já não disse.