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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 8 de junho de 2006

O CASO DO GATO E DA MORTE INOPORTUNA

Todas as quartas-feiras, por volta das quatro e um quarto da tarde, aquele gato aparecia a miar na mansarda, saltava para o telhado e daí para um cedro do jardim, descendo para o chão com ar contrariado. Uns momentos depois, corria até à porta de casa, procurando entrar pela portinhola que na mesma porta lhe estaria destinada. Contudo, ao confirmar que não estava aberta, deitava-se no capacho de palha e ali se deixava adormecer, à espera.
Quem tudo isto verificava e anotava mentalmente era o velho vizinho do outro lado da rua, reformado e com todo o tempo do mundo para tal tipo de observações. “Estranha coisa”–, cogitava, a meia-voz.
Cerca de uma hora mais tarde, o gato levantava-se e espreguiçava-se a toda a extensão do corpo, rabo incluído, experimentava de novo a portinhola, que alguém já lhe abrira por dentro, e reentrava em casa. Todas as quartas-feiras, de tarde, em batendo as cinco e um quarto, com precisão de relojoeiro dos que andavam de bicicleta.
A curiosidade é inimiga da prudência, ao que se diz. Mas quem é que não se morderia todo para decifrar um mistério assim, ali, à porta de casa, como se fosse um desafio ao seu intelecto? Então, sem lupa nem cachimbo, o idoso sherlock pôs-se em campo e tratou de encontrar resposta à mais óbvia questão que se lhe impunha: a quem estorvaria o gato, lá dentro, naquele espaço de uma hora? Fosse a quem fosse, dona ou secreto visitante, o certo é que alguém o fechava no sótão, de onde se escapava pela mansarda, e lhe negava, durante uma hora exacta, o acesso restrito através da portinhola.
Disfarçando-se de jardineiro no seu próprio jardim, começou o velho a tomar nota, na quarta-feira seguinte, com início pelas três e meia e a terminar com o regresso do gato ao seu ninho familiar pela passagem personalizada, de quem entrasse ou saísse da casa em frente.
Far-se-iam contar as quinze e quarenta e cinco – conforme o registo inscrito no relatório detectivesco –, quando a porta frontal do prédio se abriu e deixou sair alguém, com um inequívoco ar de marido que trabalha por turnos e há-de pegar às quatro. E passavam os certeiros quinze minutos das dezassete, e lá se via o bichano esticadinho até ao gume das garras, nunca esquecendo a cauda, e a meter-se no buraco entretanto reaberto. E no tempo intermédio? Nada de nada se viu.
Só se veio a ver alguma coisa, numa outra quarta-feira mais à frente, quando de repente faleceu o dono da fábrica e os trabalhadores do turno das quatro nem chegaram a picar o cartão, voltando para casa.
E o gatarrão lá estava, no capacho de palha, a dormitar, à espera que alguém, do lado de dentro, lhe reabrisse a portinhola. Mas foi o dono que, do lado de fora, lhe escancarou a porta e o deixou entrar, aí uns bons três quartos de hora mais cedo que o costume.