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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 17 de julho de 2006

NO COMBOIO DESCENDENTE A PREÇO DE FIM DE ESTAÇÃO

“Ainda dou comigo, por vezes, a esconjurar os meus fantasmas”―, diz de súbito o do meio, quebrando um silêncio de alguns minutos, como se a continuidade da conversa estivesse em perigo de sufoco. É ele o mais alto dos três, e também o único que já não dispensa a bengala.
Os outros dois, não mais novos nem mais velhos que o companheiro, vão caminhando com as mãos cruzadas atrás ou à frente, ou metidas nos bolsos, ou ao pendurão, bamboleando à mercê da gravidade, sem maior utilidade que a de apontar no chão a própria sombra.
Todos os dias se encontram no mesmo local e à mesma hora, depois da sagrada adoração do almoço em casa de cada qual, desde que um dia, já lá vão trinta anos, o comboio da reforma lhes reservou lugar à janela até ao último apeadeiro, que poderá nem ser o mesmo para os três. Eles eram cinco, no início, mas dois houve que se apearam nos seus respectivos momentos de descida, e a viagem destes, por ora, lá vai prosseguindo a sua marcha, inexorável, até um dia.
O trajecto escolhido para este passeio através da decrepitude―todos os dias igual ao de todos os dias, o passeio, todos os dias maior que a de cada dia já ido, a decrepitude―, é o da alameda central ao longo do parque da cidade, com bancos de socorro para eventuais paragens e árvores com sombra e fresquidão, se o sol, não por maldade, decerto, a tanto os obrigar.
“Que eu nem me acredito em fantasmas”―, diz o do meio, cansado de nada dizer. Ou de nada obter como resposta dos parceiros, sempre de mãos cruzadas à frente ou atrás, ou metidas nos bolsos, ou a apontar a sombra no chão à mercê da gravidade.
Destes dois, sem bengala por enquanto e mais baixotes, diga-se ainda, para mais veloz entendimento de quem com os três se cruze, um dia, seja onde for, no parque ou num dos tais apeadeiros de embarque por aí à espera de alguém, que ambos são surdos-mudos de nascença, ou quase. Um deles, embora nascido mudo, não era surdo de todo. Mas curou-se: por uma questão de empatia com outros e de coerência ante a inutilidade do que lhe era dado ouvir, resolveu ensurdecer de vez.