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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

PORQUE NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS A NÃO SER A DEMASIA

“Aquela senhora de vestido branco, lá adiante, está ali sentada desde manhã cedo”―, diz um dos funcionários da estação de camionagem ao chefe, que acaba de chegar, enquanto se entretém a mordiscar a ponta do lápis com um ar inquiridor, fazendo contas, urdindo teias, como se relesse mentalmente o último policial comprado dias antes.
“E aquela mulher de preto, além, já ali estava ontem. Nem sei se não terá dormido aqui dentro”―, diz o outro funcionário, também amante dessa literatura específica posta em filme, toda ela recheada de tiros, mortandades, perseguições a alta velocidade de rua em rua, carros a voar sem asas sobre carros que nem sonharão o que seja um semieixo partido, julgamentos com espectacularidade assegurada pelo martelo do juiz, júris desavindos, exemplares condenações. Tudo com direito à posteridade fixada no bosquejo caricatural do desenhador contratado nunca se sabe por quem.
“O que vocês me estão a dizer”― comenta o chefe, olhando as duas, de modo lento, primeiro, e fitando agora os dois, de frente, como se neles desconhecesse a apetência detectivesca―,“é que uma delas, só por se vestir de negro, é uma mulher. E a outra, porque de branco se impõe, tem direito a ser tratada por senhora”.
Os dois, surpreendidos pelo tom quase ríspido do chefe, enterraram o nariz nos papéis e no meio deles desapareceram sem rasto. Se cá pela superfície se tivessem conservado, vê-lo-iam ir do gabinete até à nave principal da estação, dirigir-se à senhora de neve e à mulher de breu com júbilo, oferecer-lhes o braço, ou os braços, qual galheteiro entre o azeite e o vinagre, e levá-las ao restaurante, onde jantaram, onde não estiveram calados um segundo, onde confraternizaram e festejaram o reencontro de ex-marido e ex-mulheres, primeira e segunda.
“E com a actual, vão três”―, diz um dos funcionários ao colega, no dia seguinte, quando a novidade se lhes ofereceu logo à entrada, antes de se sentarem à secretária.
“Talvez ele por tenha uma cama que para quatro, contando com ele”―, sugere o outro, com um sorriso de inveja a vir à tona das ideias que lá por dentro o polvilham de insensatez.
Quando o chefe chegou, já a meio da manhã, e os cumprimentou, não compreendeu muito bem porque é que eles ainda continuavam com o nariz mergulhado nos papéis. Nunca neles verificara tamanho afinco ao trabalho. Não estariam doentes?