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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 28 de julho de 2006

TOCATA PARA TRÊS INSTRUMENTOS DE CORDA E BAIXO CONTÍNUO

Eles são três. Estão estendidos na relva, sem nada mais por cima que a copa das árvores, além à esquerda, no parque. A noite, que não lhes foi malévola, ali os deitou. No Inverno, com chuva e ventania, nunca seria tão linear a proposição cenográfica.
Nem de vista eles se conheciam, e apesar disso não se guerrearam na disputa do espaço de acção. Quem sabe se eles não se tornam amigos, a partir de agora, e não se encontram mais vezes, por aí, e até se vão procurar, nesta lida temível que é a da sobrevivência na rua, debaixo de arbustos, pontes, viadutos, no bojo de carros meio desmantelados ou em recantos de becos onde nem gatos se vejam.
Qualquer deles terá metade da idade que aparenta. Cabelos e barbas cuja brancura, e sujidade, aleijariam a relembrança de quantos noutra época os conheceram, a pele mais engelhada que o cenho de credores desesperançados, uma magreza de gordos que aí há quarenta séculos fossem sepultados com vida.
O sol, não tarda muito, há-de dar-lhes corda e pô-los a andar, não vá aparecer a polícia com a conta do hotel. E é conveniente começar já a trabalhar, antes que sobre eles se instale a canícula. Tiveram ensejo, durante os pastosos minutos que antecedem o sono, de distribuir por cada qual os respectivos sectores de ataque. Um deles, o mais antigo no ramo, ficar-se-á pela baixa, até ao rio. Outro, também já radicado por cá há alguns anos, fará as avenidas novas e as zonas residenciais envolventes. E o terceiro, ainda não muito queimado na forja, andará perto daqui, sempre em volta do parque, batendo a selva de montras fixas e andantes que muito abundam nesta paróquia.
Que cada um trate de si conforme souber ou puder, seja vergado pelo peso de estender a mão aos passantes, seja de concertina em punho a fazer musicatas a metro, seja de óculos ceguinhos e bengala e chapéu com moedas tácteis e tácticas na calçada.
E aí vão eles, manquitando a fingir ou sem querer, cumprimentando toda a gente como políticos imberbes, procurando orientar-se através de estrelas que só logo à noite lhes brilharão, ou não, no olhar. Um, a caminho da frescura do rio. Outro, rumando ao desafogo de avenidas onde só mora quem tem. E o último, a espreguiçar-se até que os ossos rebentem e a mijar contra a árvore que o guardou do relento, antes de optar entre a lógica estratégica do anho acomodado ao pasto possível e o instinto de salvação do lobo ao saltar a cerca.
O céu nem sempre estará pelos ajustes para com quem o interpele de cá de baixo, ao nível da relva, e bem poderá punir-lhes a temeridade, logo mais, não os deixando ver estrelas e orientar a sua rota de todos os dias pelo labirinto das ruas de qualquer cidade.