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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

COMO SE O ESTERTOR DA MADRUGADA NÃO FOSSE JÁ NOITE A SÉRIO

O sono entorpece-lhe a pretensão e põe em perigo quaisquer projectos esboçados. Não basta ambicionar algo, enquanto o sono, com crédito de teias ao léu, não se saciar. Há que repor nele o equilíbrio e de maneira pertinaz, sem simulacros, sem trucagens, para que tudo – olhos, mãos, boca, nariz, ouvidos, ideias, vontade – volte a marchar pelo seu próprio pé, liberto de muletas ou bengalas. E é-lhe indispensável dormir duas ou três horas por noite, no mínimo, para que os neurónios ainda vivos e aproveitáveis recuperem a funcionalidade e lépidos se façam movimentar, a caminho sabe-se lá de onde, de quê ou de quem. E quem diz por noite, diz por dia, quando por aí há tanta gente a trocar a luz do sol pela que a noite só promete a quem dela faça a travessia a pé enxuto.
Fazer a barba, por exemplo: será assim tão importante? Bem melhor é deixá-la como está, feia que pareça, e poupar a pele e os curativos que os cortes da navalha, empunhada quase às cegas, requisitariam, mal o queixo voluntarioso se emproasse contra o espelho. E com que fim passar sequer um pente pelo cabelo, ainda que desgrenhado, hirsuto, atirado ao ar como se uma descarga eléctrica o tornasse incandescente? E para quê vestir qualquer peça de roupa, ou calçar sapatos, se nem está frio que assuste e do parto se saiu descalço e nu? E, já agora, porque não a temeridade de saltar para a rua assim mesmo, a apanhar a fresquidão matinal em pleno rosto, da cabeça aos pés, e através de tal arrojo disfarçar esta espécie de podridão mental que o sono, quando em excesso por escassez de cama anuente, alimenta e põe à vista?