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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

ENSAIO-PROJECTO DE MORTE EM VIDA PARA EFEITOS DE LOGÍSTICA (excerto)

Consta, por mester de metediços nessas tramas melindrosas da pesquisa em gavetões histórico-científicos – industriosos catadores por conta própria a espiolhar em pêlo alheio–, que um tal Hooke, físico inglês de meados do século dezassete, se entretinha com fios esticados, a fim de falar à distância e não se ver sujeito ao perigo de levantar a voz além das fronteiras da inconveniência delatora. E lá terá conseguido, pelo menos, porquanto sempre há-de haver quem retire proventos de tais brincadeiras, colorir ao rubro as alvíssimas orelhas das mais pudentes donzelas derretidas em seus varandins, quando, ao cair do crepúsculo, elas podiam ouvir as brejeirices matreiras dos namorados, cá do meio da rua, se já encaminhadas entre espasmos através do trémulo cordel com um copo de lata em cada extremo. Era como se eles lhes lambujassem os lóbulos enrubescidos e os mordiscassem com o vagar de quem sinta próximo o ensejo de assaltar a janela final.
Consta também que, não muitos lustros depois de Hooke ter provocado tão pudibundo frenesim língua-ouvido, teria sido Gauthey, um monge francês com ideias contra a clausura da fala, a querer valer-se de centenas e centenas de quilómetros de canos interligados, para que a voz voasse sem asas e mais célere que o vento. Acontece, no entanto, que as ventanias da altura não lhe estariam de feição, embora parecessem soprar a favor no princípio, finando-se enfim tão ambicioso projecto no meio de orçamentos sem ar, ou contra desconfianças com vento em demasia na intestina tubagem da condescendência patrocinadora – já em tal época muleta de quantos façam do sonho pão e água quanto baste à inprescindível manutenção do esqueleto em andamento compassado, sem pressas, vulgo artistas encavalitados nas andas possíveis para que maiores se acreditem ante quem neles acredite como lucro a qualquer prazo. Ou seja diante de quem os subsidie e lhes suporte essa toleirona bazófia de iluminados no breu.
E ainda foi necessário esperar mais dois séculos de ensaios e falhanços como esses, para que outro nome despontasse e se impusesse, aperfeiçoando isto, eliminando aquilo, corrigindo ou substituindo e logo amarfanhando e fazendo sumir tantas centenas de outros nomes que, sob igual estandarte, tanto se terão emproado com a mesma descoberta: Bell, Graham Bell, Alexander Graham Bell, investigador de nomeada invejável e enorme experiência nos complicativos domínios da elocução, por feliz descendência de outros, seu pai e seu avô, como ele professores de tal disciplina; e grande aficionado da música e do estudo minucioso dos sons, por congénita vocação ou por influência da mãe, também praticante.
Bell, escocês americanizado, como tantos contemporâneos e conterrâneos ou não, pela ida até tais paragens tão propícias ao engano sob desculpa da frágil saúde, e por todo o planeta sacramentado como inventor do que ainda hoje não se sabe se é benefício satânico, se malefício divino, ou se tão-só uma resultante evidente do conluio entre céus e labaredas (talvez porque em tréguas tão discutíveis como desejáveis desde há milénios de guerra).
Mas tratar-se-á de quê, afinal, nestes meandros demasiado extensos, nestes meio ensarilhados novelos temporais, nestes arremedos de tecelagem artesanal sem bilros nem unhas que génio algum faça morder, quem sabe se tão quiméricos como os seiscentos mil metros de canos que o infeliz do beneditino gaulês sugeriu mas ninguém aproveitou?
Pois bem, vamos lá então ao que pretende quem narra: como decerto se perceberá, fala-se aqui do telefone. Nem mais nem menos que do telefone, essa amaldiçoada caixa de surpresas tão amarguentas como notícias de traição legíveis na própria cama, esse esquisito brinquedo para crianças sem idade, por se saberem condenadas a sofrê-lo desde os cueiros borrados até à mortalha devolutora em caixote envernizado.
O que se diriam eles – o físico inglês dos cordéis esticados, o frade francês dos canos interligados, ou o escocês emigrante da caixa preta –, se hoje cá regressassem e alguém, tanto por malvadez como por curiosidade, lhes pusesse na mão o susto de um telemóvel?