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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

À HORA DA MISSA DAS NOVE HAVENDO QUEM LÁ VÁ E LÁ FIQUE ATÉ AO FIM

A cidade amanhece, prazenteira e amável. E é sábado, um dia em tudo igual a qualquer outro e tão diferente de todos. Ideal para se deambular a esmo em plena baixa. Ainda é cedo, se se atentar nos raios longilíneos do sol a fazer espelho nas pedras da calçada. O comércio, chamado tradicional, embora dado a bocejos multiplicáveis como ecos sobre a noitidão olheirenta de quem dormiu depressa de mais, prepara-se para mais um fôlego no empenho pela manutenção de pé, conforme a letra das leis da sobrevivência. Porque esta nunca deixa de ter em atenção que nos subúrbios da urbe se embosca o mostrengo das superfícies enormes, paquiderme cada vez mais gordo e nunca por demais satisfeito ao moer e remoer tudo o que se lhe ponha à mercê.
Rua abaixo rua acima, como se só a trama do acaso as fizesse encontrar e num beijo displicente pôr em dia a luminosidade do olhar sempre adiada, vagueiam sem tino paixões secretas, desasadas, dengosas, nunca esquecidas de quem serão, se for tempo ainda. E em tal arrojo se cruzam com eremitas entre a multidão, eternos apóstolos do bem a bem badalar por venal entretenimento; ou com donos de gente e gente com dono ou sem, cujo anonimato lhe confere imunidade às ferroadas dos literatos por aí em voo; ou com vadios de gravata e correlatos em estágio, propagandeando promessas vendidas por outros como sustento; ou com bêbedos de estratégia tão perceptível no mau hálito avinagrado dos olhos, sofrendo a ressaca para que logo se desforrem dela com juros; ou com vendedores de balcão andante e vendilhões de crenças à peça, justapondo e entremeando experiências e resultados na prática; ou, enfim, com este ou aquele fala-só, quando em lances de prospecção e demarcação do terreno, dos que salvam o mundo aos urros para que mundo algum se salve de lhes ouvir a palavra.
Esta pastelaria, de fabrico próprio e inspirado na tradição da doçaria regional, conventual e profana, de há muito granjeou nomeada e proventos bem para lá do denominado perímetro urbano. E até ela acorrem gentes dos mais variados mesteres ou propensões, sitiados ou transumantes, como se a fama da casa já fosse atestado de qualidade e concedesse aos clientes um certo grau de nobreza pela preferência. E com a iminente abertura das lojas, o formigueiro da rua toma de assalto tudo o que seja balcão e mesas, desde a esplanada ao despudor das celas de alívios fisiológicos, não sobrando um lugar, de pé ou sentado. Sedentários ou de arribação, são eles – esta clientela em tão fiel profusão – o certificado de um sucesso construído desde há décadas.
Sem fugir à norma, a ambiência é de fumo e de sussurros em conspiração pacífica, salvo esta ou aquela gargalhada, este ou aquele brado de pasmo, no meio de olhares à espreita a fingir que não. Nada de incomum num entrecho onde uma espécie de rito aproxima e afasta as pessoas, mantendo-as atentas ou sacudindo-lhes a deselegância do tombo em abstracções sem motivo. Quaisquer palavras de maior volume canoro se farão pasto incontornável de quantos ouvidos a todo o momento o remordam, estejam eles no éter ou afilados.
Numa mesa encostada ao fundo – é sempre ao fundo de algo que histórias como esta ganham peso –, estão duas mulheres de idade indefinida entre alguma coisa e coisa alguma, e cuja origem, inequívoca, se situará numa dessas aldeias em torno de qualquer grande cidade e por isso condenadas ao papel de dormitório e despensa. Pelo ouro transportado nas orelhas e nos dedos ou sobre as dornas do peito, percebe-se que terão alguma coisa de seu, muito acima do calcanhar rachado que as pariu. E já têm telemóvel, é evidente, pousado na mesa, ali bem onde toda a gente o veja e ouça.
Quando a melopeia de uma chamada se sobrepõe ao silêncio relativo em que têm estado, uma delas atende e a outra tenta interpretar e apreender o que a primeira nem diz nos dois ou três monossílabos ruminados.
“Já foi levar o gado?”– pergunta a segunda, enquanto a outra desliga e deposita o espião electrónico sobre a mesa, sempre ali, bem debaixo dos olhos de toda a gente.
“A esta hora ainda ele está de colhões na palha”– responde a primeira, de pronto, metendo boca abaixo um pastel de nata, inteirinho e num só golpe.
E toda a gente o mastigou, porque nunca antes, naquela casa, um único pastel conseguiu saber tão bem a tantas pessoas ao mesmo tempo, exceptuando-se tão-só os irrefutáveis esgares de mindinho esticado ao levar a chávena à boca.