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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 17 de fevereiro de 2007

HISTÓRIA QUAL CACHORRO A CORRER ATRÁS DA CAUDA

Havia um velho que adorava contar histórias. E ele até sabia muitas. Tantas, que para as contar todas necessitaria de viver outros cem anos, além dos cem já contados e recontados por quantos o conheciam. E as histórias ouvidas ao velho tinham uma linha comum a aprimorá-las: principiavam quase todas pela clássica expressão era uma vez. Na verdade, só as que o narrador contasse enquanto as ia inventando, como se então as escrevesse num caderno por detrás dos olhos e que tantas eram também, só essas começavam conforme a disposição, o estado de espírito na altura de entrar no desvão da memória, o grau e a qualidade do vinho e bem assim a generosidade do lugar até onde o acaso o transportasse, o silêncio e a atenção de quantos, sabendo-o por lá, acorressem a ouvi-lo.
No que concerne ao enredo, as histórias comportavam gente boa e gente má, vagabundos e trabalhadores, cantores de rua e palhaços a saltaricar, domadores de feras e aventureiros na selva, marinheiros, pescadores, corsários, piratas, detectives e ladrões. E ocorriam em estalagens, tabernas, casinhotos de caniços sem telhado, palacetes, oficinas, estrebarias, currais, prisões, igrejas, bordéis. Lugares longínquos ou ali à mão de quem o escutasse e sonhasse, qualquer que fosse a idade dos ouvidos, poder um dia protagonizar tais histórias.
Sobre o sorriso de verruma em serviço permanente e o nariz vermelhão na ponta, o velho tinha uns olhos vivos, enormes, gaiatos, ridentes. Faziam lembrar um cachopo sem punições adiadas em agenda, sempre a traquinar entre as pálpebras e a dar calor e clarividência às palavras pronunciadas, em voz branda, com dicção perfeita e uma eloquência só comparável à dos antigos gregos na arte de declamar.
Andava o velho de terra em terra, trocando cada história por um naco de presunto com pão, ou um bom copo de vinho, ou uma peça de fruta, uma enxerga de palha onde pernoitar sem pressa nem contas no fim, uma boleia de carroça a poupar as varizes. E quando soava que ele vaguearia por perto, surgiam pessoas de quantos estratos houvesse, de qualquer condição, sãs de ossos e mente ou menos mal em mazelas perpetuáveis à disputa, algo ilustradas ou apenas empedernidas por fora e por dentro dos olhos, resolutas e ágeis ou de todo amorfas ao agir, crentes congénitas ou desde o útero contrárias à massa bruta da canga de nuvens sobre as águas do baptismo.
Era já considerado uma lenda ao vivo, esse velho contador de histórias. Acontece, porém, que até as lendas perduram mais ou perduram menos, tanto nascem como morrem, deixando maior ou menor vinco na lembrança das gentes que por sorte as puderam escutar, encantadas, à noitinha. E ele um dia deu conta, sem o mínimo susto, das primeiras sombras da morte em sôfrega aproximação. Era portanto chegado o instante de embarcar, para que em paz se fizesse a travessia do rio e por lá se quedasse, na outra margem.
Entendeu, por isso, contar a sua última história, antes que o zelo do barqueiro lhe estendesse a mão para o ajudar a subir, quisesse ou não. O barqueiro, impaciente, já só lhe concedeu o tempo exacto para que a história, ficcionada na hora ou de molde ancestral, pudesse sair. Mal acabada que se dissesse a narração, embarcariam. E então, após tossicar um derradeiro pigarro e remolhar a fala e as ideias com um bom trago tinto de conforto, o velho contador de histórias começou:
“Havia um velho que adorava contar histórias. E ele até sabia muitas. Tantas, que para as contar todas necessitaria de viver outros cem anos, além dos cem já contados e recontados por quantos o conheciam. E as histórias ouvidas ao velho tinham uma linha comum a aprimorá-las: principiavam quase todas pela clássica expressão era uma vez. Na verdade, só as que o narrador contasse enquanto as ia inventando, como se então as escrevesse num caderno por detrás dos olhos e que tantas eram também, só essas começavam conforme a disposição, o estado de espírito na altura de entrar no desvão da memória, o grau e a qualidade do vinho e bem assim a generosidade do lugar até onde o acaso o transportasse, o silêncio e a atenção de quantos, sabendo-o por lá, acorressem a ouvi-lo”.
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