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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 11 de fevereiro de 2007

MERA PRESUNÇÃO DE COMO SE FAZ UM MONSTRO DE VENDER JORNAIS

Naquele tempo, agridoce e ranhoso, em que os catraios ainda eram obrigados a fazer os próprios brinquedos, um havia que não tinha grande jeito, fosse qual fosse o mester desafiado na intenção, qualquer que fosse a ferramenta a amaldiçoar entre lanhos e sangue a sério, quente e vermelhão. É que há mãos e mãos. Sempre houve. E há olhos e olhos. E há-de haver quem seja parido ao contrário dos demais, de pés apontados para a luz do dia primeiro, em ostensivo repto às leis que delimitam a vida e a tornam em campo de treinos para uma única prova que nunca chegará a realizar-se, seja por falta de tempo, seja por aquelas faltas cuja enunciação se escusará sob as useiras reservas do pudor.
Dos outros, cuja zombaria lhe doía mais que a hora de jantar passada em branco, pouca ou nenhuma ajuda obteria. Cruéis como carrascos sorridentes no momento de puxar a alavanca última, os ganapos não costumam perdoar malnascenças tão palpáveis como a evidência da inépcia, a pequenez relativa, o raquitismo, a feiura monstruosa, a escuridão da pele, esta ou aquela deformidade, ou até a fantasmagoria da pobreza pura e simples, quando abaixo de limites em que já só o escárnio a acompanha. E achincalhar um pobre, um feioso, um escurito, um baixote e um inábil numa só penada, tudo num único ser acondicionado por diversos? Uma preciosidade tão rara como ver chover ao invés, da terra para as nuvens. Ora, sabendo-se de um exemplar assim, ao dispor do sarcasmo circunvizinho, mais não há que apertar o cerco e atacar ao primeiro sinal de irrequietude manifestado pelo bicho.
Nunca aquele trambolho teve uma trotineta que se visse, um barco de corcódea talhado a canivete para vogar nos charcos da chuva, uma simples fisga de ir aos pássaros, sardaniscas e cobras, um arco de pneu com gancheta de arame, um flautim de caniço sem escala possível, um pião malandreco com bico mortífero. Nunca aquelas mãos tiveram brio e entendimento que o poupassem à chacota e à pancada ministrada por mãos outras, dos que nasceram prendados, ou sem necessidade de aprender como se prega, serra, desbasta, lima, perfura, corta, recorta, cose, cola, lixa, enlaça, ata, pule, pinta, e se ri e troça ainda de algum tosco, algum néscio a espreitar de longe, que o estar próximo de mais poderia ser perigoso.
Estando a sós consigo, um dia, carregou a espingarda do pai e saiu de casa. Quantos encontrou, quantos abateu. E no fim matou-se, com um tiro na boca, carregando no gatilho com o dedão grosso do pé esquerdo.
Faltava ainda dizer que, além do já dito, ele era canhoto.