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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

TELA ROMÂNTICA ACERCA DA VIRTUDE DE QUEM ESPERAR SAIBA

A senhora vestida de negro entrou. Olhou tudo em volta, com atenção de quem prefere manter os óculos na carteira, como se viesse em busca de algo ou de alguém que bem saberá não estar por aqui ou sequer próximo. E opta por uma das mesas fronteiras às portas de vidro para o jardim, através das quais se podem ver áleas de árvores frondosas e canteiros de flores exóticas, deslumbrantes. Se alguém, lá fora, um metro abaixo do nível do salão principal, admirasse a profusão de cores e o esmero do jardineiro, teria ensejo de ver uns joelhos bonitos, arredondados como promessas a cumprir sem qualquer data em mente, conscientes da graça que o realce da roupa escura lhes confere. Mas é muito raro haver quem aproveite a paz e a retemperança de deambular pelo jardim. E é pena.
Olhou sem olhar o teor da ementa que, solícita, logo lhe caiu nas mãos, e pediu o habitual, mostrando ser cliente tão antiga como a casa, desde a primeira hora. E enquanto desdobrava o guardanapo para o pousar no regaço, cruzou as pernas. Se o jardineiro, por sorte, andasse ali perto a trabalhar, e apesar de já se pensar idoso de mais para fantasias, não se tiraria do canteiro que acompanha a parede e sublinha o gradeamento do varandim, onde se perfilam, benévolas, as portas de vidro e o deslumbre das flores nelas reflectido.
Em frente dela, da senhora de vestido preto, o lugar ainda se mantém vago. Mas é como se estivesse ocupado: a mesa está posta para duas pessoas. A qualquer instante, pela insistente procura das horas no pulso, poderá aparecer em praça quem ela espera há pelo menos trinta anos.
Ainda o jardineiro seria um rapazola e se escondia por detrás das sebes, a fazer bem se calcula o quê, e já ela ali se sentava, neste mesmo cadeirão onde hoje– rainha com direito a trono e coroa, manto e anel– se senta e aguarda o seu rei, entretido entre cruzadas às terras prometidas a outrem. E nunca outro pretendente o destronou. Nunca outro ocuparia aquele lugar vago em frente dela, na mesa, nos olhos, no pulso nervoso de nunca serem já horas. Nem outros joelhos tão bonitos, assim arredondados como promessas a cumprir sem qualquer data em mente, se sentiriam tão cobiçados, através da benfeitoria daquelas portas de vidro, desde a tranquilidade do arvoredo e o exótico deslumbramento ajardinado.
Quando, como já parece entrever-se, a casa for demolida e o jardim se transformar numa semeadura de seringas e pus de furúnculos sem cura, talvez esta senhora do vestido preto se decida a levantar o luto e a juntar-se ao jardineiro, por quem ela até sabe ser amada e desejada há pelo menos trinta anos de tesoura em punho.
Não se sabe é se ela sabe que ele já morreu há um ano. Nem se supõe quem é que agora trata tão bem do jardim.