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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

NOTÍCIA SOBRE UM PUNHO ESQUERDO SEM CRÉDITO EM PARANGONAS

Começaram por descalçá-lo, dando de imediato um passo de metro à rectaguarda, de tão explícito ser o fedor condensado naquela indefinição entre sapatos e alpercatas. Já devia estar na água há umas vinte e quatro horas, no mínimo. A barrela, contudo, como se concluiria pelas gelhas de quantos narizes investigadores o observavam, não desenvolvera efeito algum neste caso em mãos. Dir-se-ia até que lhe apurara os odores anteriores ao estranho trambolhão – acidental? propositado? perpetrado por outrem?– em pleno lago dos patos. Ninguém poderia afirmá-lo, isso não, não tendo qualquer noção prévia do pivete, para comparação com o que agora é manifesto, por ele já transportado na altura.
Entretanto, já despido, desde a evidência da calva prematura ao negrume do sabugo das unhas dos pés, e isto a chamar-se roupa àquele nojo de farrapos que o envolviam e logo depois seriam levados a queimar, não se lhe vislumbravam sinais de violência recente. Equimoses antigas e cicatrizes de formatos vários, um ou outro hematoma, e tudo isso produto de outros tombos sem registo em chão mais firme que a pele. Nada que para já levantasse a suspeição de crime e fizesse desencadear os usuais procedimentos. Nunca deixaria, ainda assim, de ser submetido a autópsia. Mal a alvorada irrompesse.
Só a estranheza daquele punho, o categórico desafio daquela mão esquerda, hermeticamente fechada em torno de algo e a fincar-se contra todos os esforços no sentido de lhe arrancar o segredo, não negava engulhos ao fervor especialista em tão delicada matéria. Valeria o trabalho cortar-lhe os tendões, na zona do pulso, para que os dedos, quando libertos das cordas que à cega obediência em vida os trariam bem amarrados, se pudessem entreabrir e revelar que conteúdo justificaria tanto empenho? E conseguiria tal truque vencer nós empedernidos pela morte? Não seria mais aconselhável recorrer desde logo à intervenção cirúrgica objectiva, qual cesariana em barrigas mais ciosas, e fazer aquela mão esquerda parir sem dor o que a teria prenha não se sabe por quem ou por quê?
Resolveram os técnicos, por maioria, não lhe destruir a mão, e deixá-la ir para as profundezas da terra com o tesouro que nem as radiografias souberam desenterrar. E só poderia ser esse o tema comum a todas as opiniões e todos os convivas integrados no cortejo fúnebre, tendo em atenção que nunca um qualquer vagabundo, um biltre sem nome nem meios no meio autorizado, teria tido tanta gente a acompanhá-lo, com um certo ar festivaleiro, até aos portões do além.
Correndo o risco de se ser macabro, interessa contar que, no dia seguinte ao do enterro, o cadáver apareceu desenterrado e com a mão esquerda decepada, ou seja sem ela.