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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 9 de fevereiro de 2008

PORQUE NUNCA FOI MUITO SALUTAR GOZAR SOBRE OS CALORES DE OUTREM

Com um atraso de quinze minutos e meio e o devastador chinfrim de guinchos metálicos e vapor dos freios a resfolegar, o comboio chegou e lá parou de vez. Só um passageiro se levantou, sem grande pressa, e saiu no apeadeiro, de malote e guarda-chuva, apesar do dia soalheiro de partir pedra. E também só um estava à espera, impaciente, a olhar sem ver a inércia dos ponteiros. Curioso foi que quando se cruzaram, na gare, um a entrar e o outro a sair, os dois passageiros olharam-se de cima a baixo e quase chegaram a cumprimentar-se. Um esboço de vénia ao nível das pálpebras, no mínimo. E nem um segundo depois, em perfeita sincronia, um qualquer boné apitou, respondeu-lhe com fervor de silvo o maquinista, e o comboio prosseguiu a marcha, lento e pesadão, cobra saciada a deslizar entre o feno.
Logo se lhe engelhou o nariz, ao novo passageiro em viagem, quando se sentou, por acaso, no mesmo lugar em que o outro viera sentado e o sentiu quente ainda. Paira até por aí a convicção de que não será lá muito saudável tal quentura. E entendeu por bem mudar as nádegas de poiso e acomodá-las à friagem de um banco junto à coxia central, dispensando a tentação de acompanhar a paisagem pela janela, vício tão antigo como o hábito ou a necessidade de viajar.
Algumas horas mais tarde, noite adentro, como se se tratasse de uma filmagem em espelho da anterior, na mesma gare, a sair e a entrar do mesmo comboio mas em sentido inverso, outra vez se encontraram e quase cumprimentaram os dois passageiros. A vénia de novo se ficou pelo sobe-e-desce das pestanas, enquanto o esforço de não sorrir, em duplicado, lhe conferiria já alguma razão de ser. Apenas um pequeno lapso, do realizador do filme, se tornaria notório a espectadores mais atentos: desse único passageiro saído pela manhã e agora regressado ao comboio, algures se esqueceu o guarda-chuva.
Chegado a casa, cansado pela viagem, pela rotina, pelo desalinho dos pensamentos, que a idade já começa a ensarilhar e a transformar em matéria para a amplidão dos compêndios, o outro passageiro, aquele a quem o atraso do comboio matinal tanto terá maltratado e danado, ao ponto de o tornar sensível ao calor das nádegas de outrem, tirou a roupa aos repelões, deixou-a espalhada no chão conforme os passos, e, sem perder tempo a vestir pijama, deitou-se. À beirinha dele, como se já dormisse e até ressonasse a valer, a mulher não deu indícios de ter dado pelo marido. Curiosamente, estava toda nua.
Quanto aos lençóis, no lado onde ele se enroscara, com certo espanto os descobriria não demasiado frios. Como se, uma vez aquecidos sob a imposição de alguém, tivessem vindo a perder a calidez em favor da mornidão, que não do gelo para já. Não teria sido a mulher a cometer a ternura de ali se deitar, no lado dele, antes de se deixar dormir, para que ele, cansado da viagem, encontrasse os lençóis quentes? E o facto de estar toda nua, ali, à mercê, não seria sintomático de algo mais que o simples desejo de dormir, dormir, dormir? Mas não, não se atreveu, nem sequer tentou acordá-la.
Ao sair, na manhã seguinte, chovia. E o cavalheiro, que desde sempre perdera quantos guarda-chuvas comprasse, deu-se graças por ver um lá em casa, no bengaleiro.