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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

PÔR EM TEMPO DE CONTRASTE A HARMONIA PARA QUARTETO DE JAZZ

Ali, a pouca luz ou nenhuma valendo o mesmo, as sombras lançando sombra e tornando maior a morbidez de paredes e adereços, o cheiro indeciso entre sovaco e fritos, a espessura do fumo na garganta antes da metamorfose em ardência lacrimante, o perecível firmamento das pontas de cigarro, por vezes um laivo de brilho em dentes brancos ou na vidraça um tanto ébria dos olhos, e até o odioso sussurro de vozes menos atentas, tudo aparentará perfazer-se como ambiência perfeita para que o diálogo entre saxofone e piano conquiste o céu. Embora o contrabaixo, pois, e a bateria, como se avançassem na ponta dos pés, lhes envolvam, protejam, enriqueçam a argumentação. Há até quem aproveite e arrisque uns passos de dança. E alguns, porque não terão outra opção na ementa, à toa, só a sós consigo. E também se observa, sem pasmo a pedir meças, o fenómeno de haver pares bailarinos sem mulher dentro. É que mulheres, ali, estando lá como tal, mal se vêem no contexto, por compulsão do monopólio das sombras lá residentes e do fumo imperador, que o tecto e os pilares, forrados a espelho, não só não aliviam como sobrecarregam. O próprio saxofone, aliás, rouco como convém ao ambiente, é uma delas.
O dono do bar é um gigante americano e amaricado, vindo sabe-se lá em demanda de quê, há muitos anos. Tantos, que só o namorado, um egípcio de língua imprópria e cor azulada, saberia quantos. E é vê-los a sumir-se nos ares, sem pejo, de quando em quando, e de regresso a terra, uns tontos minutos depois, com luminescência nos olhos, faróis cônscios da capacidade de furar a escuridão circundante, e bem assim o sorriso, perverso, quiçá de inveja, dos mais em campo. E muitos vão sendo, todas as noites, até ao dealbar do dia após. Uma miscelânea de melómanos aprendizes—, dizem-se eles, num vómito, diante de quem apenas pergunte que horas são, por exemplo, ou que tempo, chuva ou sol, anteverá a ditadura dos oráculos para amanhã. E a dar-lhes força e ânimo, o piano e o saxofone enleiam-se como amantes em processo de reaproximação, sempre a compasso das batidas cadenciadas e dos graves subtérreos em conjunção.
De súbito, como se o fim do mundo se apresentasse a bater palmas ao entrar na sala, uma luz total deflagra em quantas lâmpadas, apagadas até este momento pela hibernação, se saberiam preparadas para tudo, desde que tudo fosse tudo menos aquilo: à porta, de máscaras e luvas negras e metralhadoras, meio pelotão de polícias finca pé, enquanto a outra metade encosta à parede, revista, apalpa, empurra e submete os ímpetos de quem lhe resista. Nem um rato escaparia ao ataque, feito à medida como um fato a estrear em festa gorda, justificado por alguma denúncia de tráfico, suspeição da presença de foragidos, iminência de ajustes de contas, uma entre mil e muitas razões em carteira para que a canzoada avance de culatra atrás. E do quarteto em funções, nem a mais distraída semicolcheia se lhe escuta então.
Afinal, tanto aparato guerreiro, e só o tataraneto do faraó é que foi de cana. E ninguém se mostrou surpreendido.
Mas linda de morrer em arrebatamento e paixão, como se calcula, ao atingir os arrepios da pungência, a dor lancinante de amputados sem quaisquer poções anestésicas, veio a ser a separação dos enamorados, com o tagarela de cor azulada a cantar em língua imprópria temas de amor, e o outro, o gigantone maricas, choramingas e ranhoso, atirado de joelhos aos pés do comandante da força policial.
A saxofonista, camarada, não querendo ver-se obrigada a tocar mais, inutilizou a palheta, de propósito, com os dentes. E foi despedida por isso, já que não trazia, no estojo, uma suplente, pelo menos. E o que é preciso é palheta.