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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

DO REQUINTE DO SUOR CIGANO AO RISCO DE AINDA HAVER QUEM TRABALHE

Sexta-feira, ao começo da noite, na cidade. As primeiras luzes, lado a lado com os primeiros reclamos luminosos, começam a suplantar a já pouca convicção da luz solar em se conservar como dia. É bem maior e mais franca a libertação de abalar do emprego e chegar a casa, hoje, que em qualquer outro dia da semana. A luz eléctrica, em pressurosa implantação, como aí atrás se denunciou, pede boleia e multiplica-se nos olhos que a alta velocidade e com que alívio se beijam e abraçam e despedem. Até segunda-feira, de manhã, hora maldita.
O senhor director, no nono e penúltimo andar, espreguiçou os braços até ao langor do estalido, compôs o nó da gravata, vestiu o sobretudo e fechou o gabinete, saindo em direcção ao elevador. Por descuido de nulo impacto em perigosidade, tão lá nas alturas, deixou encostada e não fechada uma das janelas voltadas para a avenida, para o rio, para o amplo horizonte permitido a quem estiver bem na vida, bem acima da espuma esfarrapada no areal da maré baixa.
Duas horas depois, também as serventes de limpeza se desleixaram e deixaram ficar a janela não encostada mas entreaberta por correntes de ar, que o contínuo abrir e bater de portas, na lufa-lufa de cumprir serviço, sempre foi favorecendo. Mesmo assim, porque o tempo anda morno e molengão, não há a mínima previsão de borrascas de maior vulto nos próximos dias. O fim de semana promete.
Com laivos de púrpura iridescente no pescoço, gorda, linda, ter-se-ia perdido do bando original, aquela pomba, vendo-se perseguida pelas outras, residentes oficiais no bairro em volta. Ou talvez se tratasse de um simples pombo-correio, a querer dar algum repouso às asas, para depois se orientar e prosseguir a caminhada. A questão não foi senão o ter-se metido pela janela adentro em pesquisa, dar quatro ou cinco voltas ao gabinete, e no fim não descobrir o buraco por onde entrara, vindo a esmagar o privilégio de voar contra a vidraça, inquebrável, da janela ao lado. E por ali se ficou a desventurada criatura, durante um fim de semana inteirinho, no parapeito interior, a apodrecer.
Quando, a mais de meio da manhã de segunda-feira, se aproxima do prédio onde sempre funcionou e funciona a empresa por ele dirigida, o senhor director, sem deixar o automóvel, vê-se confrontado com o quase obsceno espectáculo de uma multidão ululante e a apontar para algo que, na verdade, se vê na parede do bloco: assim uma espécie de risco escuro, tremelicante e a ziguezaguear, desde o rés-do-chão até à única janela entreaberta no nono andar. O que mais o confunde e lhe descompõe o tento, contudo, é verificar que a multidão, afinal, é toda ela constituída pelos funcionários da empresa, ali, na rua, com tanto trabalho que terão à espera deles nas respectivas secretárias.
O tal risco desinquieto e ziguezagueante parede acima e abaixo? Não importa tanto, não: não é mais que uns largos milhares, uns milhões, uns incontáveis biliões de formigas que, ordeiras e laboriosas, não se abespinharam, nem um murmúrio se lhes ouviu, por causa deste fim de semana levado de cabo a rabo a alombar, no seu nobre mester de necrófagas em serviço permanente, a bem da comunidade de que são parte e deveriam ser paradigma.
Nos ínfimos restos da pomba, lá no alto, não havia sinais de qualquer anilha. Logo, não era pombo-correio.