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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 4 de setembro de 2007

REPESCAGEM NUM RIO TEMPORAL QUE DEVERAS NUNCA FOI

Dois velhos mendigos, muito mendigos e muito velhos, numa rua londrina dos subúrbios. O rio, vê-se pelo cheiro, não deve estar longe. E o nevoeiro é de partir à pedrada, dos de que só os ingleses registaram patente. De vez em quando, sem aviso nem motivo à vista, um ronco de navio também relembra aos passantes de nariz obstruído a proximidade do rio. E a hora é apenas a perenizada em filmes rodados a preto e branco, não aconselhável a pulmões fracos, crepuscular, opaca, a começar em cinza esquálido e a acabar em treva de além. Aceitar-se-á, assim, que também já se vejam candeeiros acesos, esfumados pela neblina goticulada, mais com a missão de sobrecarregar o negrume, que de exterminá-lo.
Destes pedintes, o mais alto dos dois usa um chapéu de feitio esquisito, feito em tecido de padrão quadriculado, igual ao da capa, ambos já fora de moda há um século e mais desbotados que ideias de outrem a coçar por nós. E fumaria cachimbo, se a pipa do cujo, roído pelo gasto, tivesse tabaco. E até revela o tique estudado de quem, em tempos, usou monóculo ou lupa ao pesquisar descuidos de infinitesimal aparência à primeira espreitadela autorizada. Terá sido, então, alguém importante nos meandros onde o crime já grassava como lepra e se sabia compensatório do sacrifício imposto ao consumá-lo, que não ao combatê-lo, como ele. Não vai ele descalço, apesar do gelo londrino numa rua suburbana, com o rio a ver-se pelo cheiro de tão perto, e apesar de indumentado por capa e chapéu aos quadrados, tão desbotados como ideias fora de moda há cem anos? E nem para umas míseras sapatilhas ganhou? Ou seria a droga o carrasco de uma tão atrevida carreira?
Já o outro, de braço dado ao outro e a cantarolar entredentes quaisquer brejeirices tabernícolas, traz prantado no cocuruto um chapéu de coco todo esburacado, quiçá por balas, e, ainda que de igual maneira descalço, usa polainitos. A imposição do bigode será sintomática em quem precise de cofiá-lo ao emitir opiniões, tolas que sejam. Pendurada da mão esquerda, uma mala de médico não chega para lhe conferir a imperatividade dos sábios. Aliás, foi-lhe esvaziada num beco, por malfeitores de pernas saudáveis, há largos meses–, admite ele, não muito certo em relação a datas e eventos com distâncias superiores a uma noite ou duas.
Para onde irão? Vão a caminho do rio, deve haver um cais ali muito perto, cheira mesmo a ele, a lavar os pés e esperar que a água, por acção do gelo no ar e nas pedras desta rua virada aos subúrbios, quente lhes pareça.
“Elementar, meu caro Watson”–, diz o mais alto dos dois, de braço repousado nos outros do clínico, como se um mavioso solo de violino se lhe escutasse àquela hora tardia. E a hora é apenas a perenizada em filmes rodados a preto e branco, não aconselhável a pulmões fracos, crepuscular, opaca, a começar em cinza esquálido e a acabar em treva de além.