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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 30 de julho de 2007

PORQUE DE MILAGRE SE TRATA SOE EM FORÇA O CLANGOR DA MUSICATA

A casa, toda ela urdida a partir de ripas, tábuas e barrotes de idade já legível a medo, é a grande novidade, no pousio. Uma nova casa velha ou vice-versa –, declama-se sob a costumeira velhacaria de quem sempre olha de viés, qual galináceo entre pares. E todos saberiam daqueles materiais por lá despejados e amontoados, mas ainda ninguém deles se soubera valer até então. Pois havia de ser preciso um forasteiro, um viandante oriundo de quaisquer estranjas remotas, um estranho ser de melenas quase ao rubro de tão ruivas e olho azul, para que o povo despertasse em sobressalto e acorresse, meio remelento e estremunhado, incrédulo ante o fantasma que a clareira da manhã lhe deu a ver: uma casa de madeira, em corpo inteiro, parida durante a noite, num baldio deixado à mercê de quem lá quisesse pernoitar, mas ao relento ou numa tenda, quando muito. Debaixo de telha, já a conversa seria outra.
O pousio, no entanto, não tem dono. Nunca teve dimensões registadas nos calhamaços da conservatória. E nada de nada se sabe da história daquele pedaço de terra e calhaus a esmo, silvas, cardos, feno, cigarras, caracóis, lagartixas e uma cobra ou outra. Afinal, um terreno comum, ou seja de toda a gente e de ninguém. Como admitir que um vagabundo de suspicaz aparência, estrangeiro, brinco na orelha e tatuagem de flores no antebraço, nele se instalasse assim, de repente, como que tombado do céu num meteorito, sem dizer quem é a quem de direito e sem requerer a indispensável licença de construção num sítio público? Como tolerar tamanho abuso, quem sabe se de algum foragido com cadastro sem uma única linha em branco, talvez mesmo traficante ou ladrão de santos, mentor do amor ao léu do luar e até do aborto?
O sino badalou, juntou em uníssono os apelos a uma pronta remoção de tão empedernido caroço na garganta colectiva, e sugeriu bacamartes, cajados, gadanhas, forquilhas, picaretas, machados. Tudo o que se considerasse ferramenta propícia à função de repor a ordem natural das coisas e de lhes restituir a harmonia. Não tardaria muito e os borregos, para não falar dos crianços filhos de gente, começariam a nascer de farripas vermelhuscas e olhos de esmalte cerúleo. Impõe-se, pois, um contra-ataque sem reservas, exemplar, esclarecedor…
– Alguém por aí fez correr, no mês passado, que vinha aí um novo messias – diz um, a meia-voz e trescorado até aos pêlos púbicos, como se se acusasse a si próprio do insolúvel pecado da indecisão entre crer ou fingir que sim.
Todavia, no impulso de avançar ao encontro do inimigo, nem ele nem ninguém hesitou. E a velha casa nova, numa só noite parida, num só minuto se fez ascender céu acima, arrebatada entre labaredas e fumo, a desfazer-se em poeira de centelhas tão brilhantes como astros no firmamento. Quão majestosa e emotiva pode ser a noite nos crânios, ainda que contemplada de dia e de olhos vendados pelo ardor das cinzas.
Há quem proclame ter visto o santo lá residente a ser levado, de cabelo em chamas e olhar aquoso, em pranto, através das nuvens. E também logo haveria quem se interrogasse acerca de quem teriam acabado de crucificar sem cruz nem ladrões, bom e mau, por companhia.
Daí, esta capela, que hoje se implanta no lugar da casa, como prova insofismável de que o milagre se deu.

sábado, 7 de julho de 2007

QUE DE OVOS TAMBÉM NASCE A MORTE E NÃO APENAS A VIDA

Coexistem, nestas ribanceiras, milhentas tocas de coelho, já que o saibro é solidário e garante uma mais ágil construção de luras sem fim, permitindo múltiplas hipóteses de fuga, em caso de ataque de furões e cobras. Serão, como se adivinhará, quilómetros sobre quilómetros de galerias escavadas à unha no baixo-ventre da montanha, interligadas – admite ele, por pessoal dedução –, qual subterfúgio de quem tome o umbigo como ponto de mira e direcção única.
Muito perto da entrada de cada toca, o prado é generoso em ofertas, com clara predominância de serralhas e panasco, não contando pois, senão em desesperada cedência ao esmeril da fome por medo da canzoada, com as hortas e com tudo o que lá se desperdiça, se espezinha, e por lá estiola e se perde, sem préstimo nem honra para ninguém. Tudo em tudo similar ao desperdício – pensa o viandante – feito com o tempo de vida posto ao dispor, desde o instantâneo equívoco da nascença, de quem não saiba merecê-lo.
Subindo sem grande convicção a encosta até ao cimo, a mata de pinho e sobro proporciona albergue e campo de manobras aos milhafres, os perenes maus da fita numa história sempre desonesta com os láparos. Tal e qual como nos meandros por onde divaga a existência humana, em que uns se vangloriam dos proventos alcançados só por terem asas, e outros, muitos mais, se maldizem pela carga dos pés de chumbo que ao chão os tem agarrados –, resmói entretanto, em voz de quase nulo dispêndio de saliva e ar, esse provável prossecutor de nuvens altas no chão, enquanto franze o sobrolho e vai mordiscando os lábios ao fingir compenetração na analogia.
E quando as chamas, nos tempos vindouros, dizimarem tudo em volta (arvoredo, silveirões e matagal vadio, feno e demais ervas forrageiras, pomares e hortas, ou até casas e casebres e palacetes com jardins de sebes de buxo), o que será feito dos desinquietos orelhudos de bigode intermitente e pompom de pêlo a fazer de rabo? Por certo não lhes bastará a previdência explícita na construção dos mil e um quilómetros de galerias subterrâneas, interligadas – readmite ele, o viandante, com o delido fingimento das sobrancelhas a arremedar aduelas por cima dos óculos –, qual desculpa de quem espreite o umbigo como ponto de mira e direcção única a incutir aos passos, de cá para lá e de lá para cá, fora e dentro.
Neste entretexto, se os coelhos chilreassem e pusessem ovos, de que cor viriam a ser?