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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

NARRAÇÃO ESTÓICA DE UM GATARRÃO FELIZ COM UM FINAL DE TRAGÉDIA

Morava num último andar, o quinto, onde já teria nascido, e tinha um gato. Mas não tinha elevador. Prédio velho, anterior à obrigatoriedade legal, logo na construção, dessa modernice com cerca de vinte e um séculos de sobe e desce em alternância, quando o número de andares projectados trepe acima do máximo estabelecido como norma do que na vertical ainda dispense bordão e transporte. E no peitoril das altas janelas de guilhotina, a periclitância corriqueira em vasos de flores de regar só à noitinha, assim como o indispensável cordel intimado a ser estendal da roupa possível a secar ao sol nocturno, para que a manhã não se obrigue ao desconforto de secá-la já no corpo.
Quanto ao resto, o trivial: uma reforma magérrima, alguns vícios sem substrato de furar as algibeiras com o peso, três amantes de excepção por não se ignorarem nem se digladiarem em prol do exclusivo, umas tantas amizades de ocasionais reencontros livres de programa prévio, uma bicicleta amarrada à grade do patamar e sentenciada à ferrugem do pasmo, livros encavalitados sobre livros que sobre outros livros se encavalitam e afinal se calam todos, uma rabeca sem cordas ou arco e logo hipóteses de martirizar crânios vizinhos, e a garantia, por teimar em viver a sós com o bichano, de acordar de manhã, muito cedo e em liberdade, sem sarro a não ser na gorja, a ouvir a habitual desgarrada de quantos garnisés se arroguem de vivos nos arredores, entremeada por melodias saltitantes tiradas pela harpa da passarada.
A maior contrariedade, gigantesca nos efeitos de gradual acumulação sem retrocesso, era a dos noventa e cinco exactos degraus de madeira a escalar três ou quatro vezes por dia. E quase tão desgastante como a ascensão remordida passo a passo, era a aventura em sentido inverso, noutras tantas edições, com a neblina do vidro das lentes a aumentar de grossura e a diminuir de eficácia em semelhante proporção, não se sabendo, em cada descida arrostada, se aquela não seria a derradeira, que o mesmo equivale a dizer a primeira sem regresso ao usufruto de sentir algo fofo a ronronar contra as pernas. Um dia, de acordo com a própria matemática, seria. E foi. Mas não num desses reptos lançados ao abismo quotidiano de noventa e cinco degraus a descer. Nem sob o afogo, a traduzir-se por falta de ar à evidência, ao acabar de galgá-los ao contrário, cada vez mais devagar, a caminho do céu.
Rumorejando um para o outro, os dois extremos de uma língua bífida dizem que se foi ao vir-se, quando, em casa e na cama de uma das três já anunciadas alternativas de assumida mancebia, tentava ressuscitar o equilíbrio entre a procura e a oferta. Morte santa —, complementam as duas pontas da taramela de réptil a estender-se ao sol. De que vale esgrimir a inveja como argumento perguntam-se outras línguas de uma só extremidade por opção —, quando o mais importante é trazer a sombra aos pés e nunca carregada às costas?
Morava num último andar, o quinto, onde já teria nascido, e tinha um dono. Mas não tinha elevador. Mesmo que o tivesse, contudo, nunca a tal recorreria, se nem chegava aos botões. Daí, também ele se foi, mas não sob a vigência de qualquer orgasmo tardio. Consumido pela fome e pela sede, não permitiu que lhe pusessem a mão e o persuadissem a mudar de prédio e de dono. Preferiu morrer, arrojando-se da varanda em tombo livre, esmagado sobre a calçada. E há quem jure tê-lo visto e ouvido, pelo ar, antes do chão final, a miar e a arreganhar os bigodes contra a conjuntura. Será que morreu feliz? Se em vez do gato tivesse caído o governo, estaria feliz de morrer.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

PAISAGEM PROTEGIDA ANTES QUE A MENTE A DANIFIQUE OU PERVERTA

O rio, ali, passa gordo e manso. Cobra saciada, quase imóvel, no meio de salgueiros choramingões ou não, choupos descabelados por já não servirem sequer de mote fácil ao dispor de poetas suicidas, amoreiras alheias à faina das lagartas tecedeiras de que foram nutrimento e rota obrigatória através dos desertos orientais, acácias injuriadas como de raízes devastadoras da vizinhança por sofreguidão sem limite, alguns eucaliptos de avós nos antípodas cuja fama se compara à das acácias, canaviais autóctones de prolixa multiplicação e bambus de longínqua génese transladada pelas caravelas, muito lúpulo nunca aproveitado a preceito e por aí armadilhado pela maldição das silvas. E tudo isto em ambas as margens, no cumprimento do papel de guardas fronteiriços sem grande empenho na vigilância, dificultando ainda assim o acesso aos pomares de laranjeiras, a quem do rio em seu tempo lhes namore o ouro, ou o mergulho menos cuidadoso nos averdungados fundões, a quem de terra se lhes atire e intente superar a nado.
Mais credível é ir de barco, e aqui, nesta versão minúscula de enseada quase natural, fora da água, estão dois. Dois pequenos botes, voltados de borco e presos por correntes e cadeados ao arvoredo, talvez dos só utilizados de noite em pescarias furtivas. Não seria difícil ultrapassar, se de inevitável merecesse o cunho, o estorvo dos embudes. Qualquer bom alicate, qualquer martelo, qualquer pedregulho, revolveriam em segundos a dificuldade e poriam os barcos na água. Quanto ao que os movimentaria, na ausência de remos ou vela, só à vara. É capaz de ser para isso que por aí há tanta abastança de bambus. E se por azar vier o dono cedo de mais, aquando do desembarque, recomenda-se que o cujo aconteça na margem oposta. A ponte nem fica longe daqui, a uns quinhentos metros a jusante. Ou então use-se a vara. Não se dê azo à desvergonha da pesca clandestina nos rios, começando pela que neste mal dissimulado ancoradouro, noite alta, se subentende. Se se catasse o matagal entre os caniços da berma, descobrir-se-iam restos da rede utilizada, cordas e demais estratagemas da pilhagem piscícola fora de horas, pois então. Portanto, combata-se a problemática atinente a tais excessos que só a amplidão da noite vivifica.
O corpo apareceu a boiar ao fim de uma semana. A mansidão da água não o quis apartar muito do ponto onde se terá despenhado. Ou onde alguém o fez despenhar —, zunem alguns. Apesar do avançado estado de decomposição, não apresentava convincentes indícios de violência anterior à probabilidade da causa de morte por afogamento, o que só com a requerida autópsia e os exames periciais em decurso se saberá esclarecido —, consta no primeiro relatório exarado pela polícia, nem hora e meia depois do achado (dito macabro, por uns, e rocambolesco, por outros). Achado esse que sob todas as perspectivas se crê obra do acaso, embora sempre sujeito a exaustiva investigação para completo apuramento da verdade.
Pensa-se que a vítima teria surpreendido o seu carrasco, ou carrascos, quando eles, ou ele, acabado o passeio fluvial ao lado de lá dos limites do abuso, porque sem a necessária autorização dada pelo dono e com destruição à pedrada do correspondente aloquete, voltavam a terra firme num dos dois botes até aí guardados, fora da água, em decúbito ventral e em cais privativo, acorrentados a qualquer tronco. Quem os prognosticaria expostos à sanha, por agora impune, de algum noitibó sem paternidade assente em registo oficial? Quem os desejaria assim, resumidos a um, uma vez que um deles jaz no fundo do rio, em frente desta amostra de angra quase natural, de casco esburacado à facada e carregado de penedos para por lá se manter agarrado ao lodo?
Hoje, já com alguns anos de águas passadas sobre essa noite maligna, vê-se ali um memorial encimado por um cruzeiro de pedra, de molde aparentado ao dos padrões das descobertas de terras de outrem, onde alguém, de quando em quando, deixa flores. Mas a pescaria, nocturna e forjada com artes proibidas por lei, ainda não acabou. Nem tão cedo acabará, enquanto houver pescadores a contar histórias e contadores de histórias a pescar. Quais mentem mais?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

PASSEATA DOMINGUEIRA A SÍTIOS IDOS POR CATÁLISE DO IMAGINÁRIO

O poço, ao fundo da quinta, com a horta ali ao lado. E por cima dele, a coadjuvar-lhe a função, o moinho de vento. Perto, valendo-se de igual modo da fartura de água na terra, o pomar de tangerineiras completa o primeiro quadro observável. Outras árvores, todavia, dispersas pela encosta, também posam para a eternidade do que nem a almeje e use como única dinâmica impulsora em vida ainda, se a condição de estar vivo em tempo útil é uma gota, comparada à incomensurabilidade de milénios da condição outra, a de estar morto. E também por ali vivem alguns arbustos de não menor importância no proveito, plantados em eras idas ou espontâneos, sem exigência de quaisquer cuidados, como medronheiros, marmeleiros, loureiros, espinheiros, além dos crónicos silveirões, pensados como vedação natural contra intrusos, bípedes e apaniguados ou correlatos.
em cima, no monte que tudo cerca e domina com excepção do céu, a predominância é de pinheiros, mansos e bravos. São eles a moldura final do quadro aquém da hora de abalar. Deles é a lembrança última de quem arremeta a estrada sem propósitos de um dia repetir o gesto em sentido inverso. E poucos foram os que a tal desistência se deram, reduzidos a si mesmos, com olhos de cão cabisbaixo e rabo metido no lugar onde é comum vê-lo metido em tais andanças. Entretanto, luras e luras se calculam escavadas no saibro onde os pinheiros se fincam e contestam o domínio da ventania. Já nasceu há muito o sol, e daí não se encontrarem senão breves rastos dos moradores nas ditas luras de saibro. Hoje é domingo. Logo, dia de nem um pé botar fora de casa, o que se traduz por dia de dieta a rigor contra a gula predadora, canina ou pior, se for de dípode sem corrente nem dono mas esfaimado pela inata predisposição de bem pespegar toda a bravata.
Ouve-se um tiro. A passarada sacode os ares num alvoroço, ainda que o tiro nada tivesse a ver com ela. E há um cão a latir, de todo votado à desagradecida posição de subalterno, apontando às silvas. Quem sabe se delas não salta um fauno assanhado por lhe perturbarem o assédio a alguma ninfa de avantajadas carnaduras por estrear. Ou algum filho de ninguém consagrado à vadiagem. Ou qualquer facínora em fuga às patorras da lei e ali hospedado à espera de mais fraca luz na rua. Ou a singularidade de uma peça de caça sobrevivente à matança dominical autorizada. Só que nada de nada se escuta, varrido o eco e recolocado o sobressalto dos pássaros no arvoredo, em resposta ao estrondo, que até foi capaz de levantar folhas do chão e quase as restituir aos ramos de origem. Em todo o espaço envolvente paira a modorra favorável ao arbítrio das horas de não ir a parte nenhuma. Mas quem é que atirou, e contra quem ou contra quê?
Ainda ninguém falou, de propósito, da casa. Talvez porque se situe na estrema de cá da quinta e nada de notável nela se note. A vulgaridade tem também os seus pormenores a considerar como utilitários, e com tanto direito a menção em acta como outros de outra mais espevitada e empenachada ascendência. Parece que foi mesmo de lá, de uma das janelas da casa voltadas ao pátio, que o disparo ganhou voz e tomou a palavra duas ou três léguas em volta.
Os passaritos, afinal, até tinham razão para tamanho alarido de penas pelo ar e guinchos de espanto e dor: à guarda da mais antiga macieira da quinta, esparramados no escárnio da terra, dormem tão-só vinte e quatro cadáveres de peso nulo, condenados pelo indubitável crime de terem asas e vida.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CRÓNICA LIGEIRA DE UM PAR DE BINÓCULOS EM FUNÇÕES DE ESPREITA TIDA POR ÊNFASE

O carro, vermelho, fazendo correr atrás dele uma longilínea nuvem de pó, parou a meio da subida. A sombra da mata, sem quase ser preciso entranhá-la, a tanto convidava quem ainda por cima se revelasse com alguma pressa, fosse nos gestos de autómato com corda a mais, fosse nos olhos de periscópio sem sossego acima das ondas, fosse nos risos desconexos da causa que os fizesse desprender. Este lugar, isolado na serra e afinal por ambos conhecido desde há anos, não fora escolhido ao acaso. Eles sabiam que ali disporiam de condições para dar ensejo prático àquele projecto de meses. E a temperatura do ar, atendendo à época do ano e à altitude, nem poderia estar melhor. Dentro da mata, bem se vê, sem entrar muito, e distante de olhos caninos.
Mas é claro que ainda estenderam a toalha na mesa do chão, mista de musgo, relva, gravetos, folhagem seca. E sobre ela ainda despejaram a ferramenta e os ingredientes comestíveis de pressupor num qualquer bosquejo de piquenique. E chegariam mesmo a mordiscar um pedaço de nada e a beberricar umas gotas de coisa nenhuma. A sede e a fome que os roíam, porém, eram bem outras, e havia que sem mais demora e à medida consentânea lhes dar sustento ou vazão.
Como era de seu ofício, de binóculos assestados, no poleiro da torre de vigia, o guarda florestal viu o filme todo. Começou por estranhar a presença do carro, àquela hora, em dia da semana, e acompanhou-lhe o risco de poeira serra acima, desde o sopé até à meia encosta, onde a tácita condescendência de um castanheiro com idade insofismável de séculos, dono do espaço coberto de ouriços, o fizera acomodar. E não deu a menor importância nem crença alguma ao velho subterfúgio da toalha, de imediato estendida na relva, e bem assim aos acepipes nela também logo alijados como carrego em demasia.
Cena a cena, gesto a gesto, tão longe e tão perto que lhes podia contar os impulsos e quase os ouvia arfar, gemer, gritar, o guarda levou para casa, na ardência dos olhos, ao fim do turno, a plena convicção de que nessa noite, e nas demais noites e manhãs e tardes de folga que se lhe seguissem, a mulher, ainda nova bastante, ainda prendada e graciosa, o não reconheceria. E se ele um dia até a trouxesse àquele lugar, junto ao castanheiro ancião, a fazer um piquenique? Nada lhe contaria, isso não, do que lhe fora dado espreitar pelos binóculos, ou arriscar-se-ia a desencorajar, por parte da amantíssima esposa, a justa e ambicionada equivalência ao empenho a pôr ao léu e a manter ao de cima, impante e fero, inquebrantável, pela noite adentro.
Confuso veio a ficar o psicólogo, que ela consultava com regularidade, por não encontrar explicação para a recorrência do sonho em que um automóvel vermelho a transportava, serra acima, desde o sopé até ao meio da vertente, enquanto ia levantando atrás dele uma nuvem com a inequívoca forma de um falo em gradual crescimento e a engrossar, embora só de poeira.