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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

QUANDO A COR DO VENTO EM MARCHA MAIS SE APROXIMA DA COR DO CHUMBO

O carro era verde. Podia ser vermelho, ou azul, ou branco, ou mesmo preto. Mas logo lhe calhou ser verde a única cor disponível na altura, e a altura, que seria a de ter carro e bem depressa, era aquela. Ter um carro parado à porta de casa, toda a noite e todo o dia, não era grande estatuto, embora fosse. Era ter rodas para andar, quando a vontade o considerasse incontornável, a par dos outros. Ou até a deixá-los para trás, atónitos, roídos de inveja, agarrados ao chão. Ter um automóvel era mais importante que não ter roupa ou sapatos de trocar todos os dias. É que logo depois da aquisição da máquina, de maior ou menor potência no resfolegar, tudo se lhe seguiria. E seguiu.
Morava ali, numa daquelas mansões de maior estatura, uma menina, grácil e muitas vezes à varanda, com a inequívoca aparência de quem entretece a escada de corda que um dia, ou uma noite, lhe garantirá a aventura da descoberta do mundo. “Que desperdício!”— clamavam as vozes passantes, a pé ou de carro, verde ou de qualquer outra cor que soubesse acautelar o encandeamento. Menina-mulher, ou vice-versa, de olhos e olhar amendoados, de tormentosa e ruiva cabeleira e quão benignas as formas, entretida a ver passar quem passasse e acaso lhe abanicasse a atenção. Tanto ela teria visto o novo carro, como o carro a pudera caçar cá de baixo. E ambos se sentiriam bem ao comungar o achado de tão franca reciprocidade. Aquela cor verde, porém…
O pai dela, tiranete em descensão natural, proibiu-a de se aproximar da janela quando o ronco do bicho se fizesse ouvir na rua, jactante, a mostrar-se ao povoléu. E até antecipou a escrita da história, o pai, ao carregar a espingarda com zagalotes e ao deixá-la dependurada atrás da porta da loja. “Caça grossa, chumbo grosso”—, explicou-se o velho ante o espelho, do qual tinha por uso antigo escutar a opinião, nunca até hoje indutora de atitudes menos sábias.
A patrulha da guarda, cabo e soldado, informada pela vizinhança, foi lá a casa aconselhá-lo a ter calma, mas o patriarca não estava. Que só podia andar no campo àquela hora —, disse a filha ao graduado, mas sempre a olhar para o outro, o ainda sem divisas. Aproveitou a saída, a patrulha, para também avisar o dono do carro de que não abusasse da sorte e se mantivesse à distância. E a tarde daquele dia caiu como é habitual cair todos os dias, delegando na noite a função de vigiar os passos tardios de quem pelas ruas se perca. Há sempre passos vadios a soletrar palavras novas, a decompor pensamentos como método de os reter, a condimentar gestos tidos ou a ter a breve espaço.
A povoação acordou a altas horas com o tiroteio e a gritaria do velho, em ceroulas, na varanda: a filha tinha fugido de casa. Toda a gente se aglomerou em torno da fúria do patriarca traído, pai exemplar e bom amigo, e se pôs a caminho da rua onde vivia o dono do carro, inimigo principal a eleger e a eliminar em sequência imediata. E lá estava ele, o bólide de verde coloração, afinal, e muito bem estacionado junto ao portão. Ora, se o dono tivesse sido autor e agente na fuga da donzela, não se serviria do carro para mais depressa a consumar? E se não foi com este, com quem zarpou ela?
Foi com o cabo da guarda, o já com divisas nas ombreiras e nenhum empenho em por lá as conservar, dando oportunidade ao soldado de se abalançar desde logo ao degrau da promoção, se o que é preciso é subir, subir, subir. Nem que seja por escadas de corda.
Acalmado o sussurro com dificuldade, ao longo dos dias após aquela noite de pasmo e ódio a ninguém e a toda a gente, lamentava-se o pai da donzela fugitiva aos amigos, entre os quais o dono do carro verde, aceite entretanto pela grei residente: —“Grande azar foi este gajo não ter comprado um carro de cor igual à do que o cabo comprou no dia em que lá foi a casa!”
Vermelhão, ao que parece.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DO PERFUME DAS QUINZE ROSAS NUM RAMO E DE UM SÓ ESPINHO A PICAR

Espreitando de lá, da janela, na rua, ao nível do solo, deveria estar um frio de rebentar pedras onde pedras não houvesse. Via-se e lia-se com o malévolo protagonismo da geada, capaz de, de longe, arremedar um nevão. Só de longe e olhando de dentro para fora, todavia, porquanto lá, na relva, aquela alvura toda até dentes devia ter. Sair, com um frio assim, nem pensar. Era preciso esperar que o sol compusesse o ramo e na íntegra restituísse a verdura à vegetação rasteira, a mais próxima dos pés, não obstante estarem bem calçados e aos pulos, no frenesim da não anuência à gradual transmudação em penedos de gelo, já que esses, uma vez alojados nos contentores da expedição a lugar algum, tão cedo não regrediriam de tal estado, terrível em qualquer ponto do mundo, o de penedos de gelo em vez de pés.
"Telefona a dizer que estás de cama"—, chegara ela a sugerir, olhos e ideias ainda ofuscados pela luz da janela, que lhes inundava o quarto com fulgor crescente e parecia sugerir novas cores e novos reflexos no ondear dos cortinados, nas paredes, nos arabescos de sombra. Tudo a mancomunar-se na intenção de reformular a tendência do anunciado por ele, poupando-lhe, a ela, os olhos ao charco lacrimejante de mais uma despedida até um dia.
Determinada a conservá-lo consigo, fossem quais fossem os custos da peleja, ainda usou o truque de deixar uma perna, nua, longa, capciosa, fora da roupa, como se desígnios secretos não tivesse, exposta a quem reentrasse no quarto ao sair do chuveiro, trazendo apenas uma toalha atada à cinta e o cabelo e não só a fumegar. Logo após ter aproveitado o brasido da sugestão do demo nela instalado, ele saiu mesmo, lesto e indiferente ao rigor da geada vislumbrável pelas janelas. Mas aqueles assanhados minutos de retenção da saída tiveram, para ambos, maior ênfase que toda a epopeia nocturna acabada de ultrapassar em guerra aberta, sem regras nem precessão de pruridos. Foram quinze minutos exactos a arrepelar cabelos, a esgadanhar lençóis, a gritar sem gritaria aos ouvidos, a cavalgar e a arfar entre esgares e nervos, e a chegar aos céus em uivo uníssono, para amainar pouco depois, suspiro a suspiro, como a maré em retirada areal abaixo.
Quinze anos depois, ao depor-lhe um arranjo florido sobre o mármore da campa — são quinze rosas flamejantes, tintas de sangue —, ela revê na lembrança aquele quarto de hora desencadeado pela perna fora da roupa e descura um quase sorriso de felicidade, embora triste de mais para que a luz o consinta. A clandestinidade do amor, então e sempre, insinuava nesse amor a ilusão de coisa eterna, apesar de cingido a um ou dois encontros semanais, no princípio, depois a uma ou duas vezes por mês, e, quando amadurecido, a uma ou duas fugas por ano. Havia quem dissesse que o fervor dos primeiros dias se mantinha em ambos com alma igual graças à rarefacção gradual daqueles encontros. E foi mesmo esse o penúltimo ensejo que tiveram de estar juntos. O último, ainda na clandestinidade, foi no funeral dele, dois dias após a noitada que, como se pôde ver, haveria de terminar na avidez daqueles quinze minutos de total arrebatamento, afinal fatídico. Nem chegaria ao gesto de tomar assento no carro, tombando em pleno tapete de geada, com o olhar tão vidrado como tudo em volta.
Hoje, ela, uma bela mulher de quarenta e cinco anos solteiros. Ele, um nome gravado em pedra e, em cada quinze dias, desde quinze anos, um lindo ramalhete de quinze rosas, rubras de sangue, ali depositado por ninguém.