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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

DESDE O DÚBIO GOZO DA MALEDICÊNCIA AO REBATE FALSO DAS RECORDAÇÕES

O mais provável é o charco ter secado depressa de mais. E daí a visão daquelas gretas medonhas, no que antes seria o lamaçal do fundo, tal como a inesperada possibilidade de se lhe descobrir o âmago, em boa medida, assim, quase sem esforço. Quem deu o alarme? Não importa muito determinar a identidade do cidadão, ou cidadã, que chamou as autoridades. E talvez importe. Andar em divagação por ali, um retiro ermo, um carreiro manhoso, entre silveirões, não será bem para toda a gente. Só por ali andará quem noutros lugares, no meio de passos e olhos anónimos, não goste de andar. Quem se surripie à denúncia de si mesmo através do reflexo nas montras, ou em vozes já catalogadas pela sanha de alijar o dia a dia, ou nas lembranças transformadas em lastro passível de fazer adornar o bote em marcha.
A curiosidade diz-se parente próxima da indiscrição, mas no caso em mãos nada parece apontar para o excesso de olhos por parte de quem lá se tenha perdido em suspicaz confabulação de si para si. Nem para a imundície do vício de espreitar amores vadios em progressão mato adentro. Só o acaso, portanto, conduziria alguém à descoberta de um fenómeno cuja ocorrência se sepulte no tempo, mesmo que no fundo lamacento de um charco sem pretensões de maior longevidade que a comum em charcos destes, fabricados e mantidos pela chuva, mas só até que o sol, carrasco, tanto venha consentindo.
Não muito longe, ainda nos alinhavos, uma rua a ser, um dia. Apenas o rasto hesitante de lagartas e pás mecânicas, o terreno esventrado e revolvido, e a impingir às carradas noutro ponto da cidade onde nem falte, os paredões inclinados, com a inevitável radiografia de estratos milenares a expor a crosta ao léu. Saberiam os sapientes engenheiros da existência do charco, neste entretanto ressequido, ali tão perto da nova rua projectada? E nada nele viram que os pasmasse e obrigasse a repensar o esboço original? Não teriam precipitado a aprovação e o arranque do batalhão desintegrador da coesão paisagística? Ou terão tão-só ensurdecido, como é costume, perante a hipótese de obstáculo em que quantas vezes se escuta o clamor patrimonial da história, das artes possíveis, da mais térrea tradição?
Sempre foi de uma criança, um ganapo aos pássaros, o primeiro olhar a descer abaixo do solo e a ver o que outros nunca veriam. Só não foi capaz de ir além dos olhos, ou de os transformar em picareta e trazer para a superfície a razão de tanto pasmo. Nem foi capaz de se manter caladinho e de guardar segredo acerca daquilo que na lama do fundo tão bem se soube conservar. E é claro que só podiam ser os pais a ir à polícia, à esgrima sobreposta dos diversos canais de televisão, à fossa mista de jornais, jornalecos e pasquins de qualquer cor.
O anúncio oficial da descoberta, considerando a importância daquilo que dela resultará para a comunidade, será feito pelo presidente, em conferência de imprensa, e merecerá honras de manifesto a publicar, a breve prazo, por conta das instâncias governamentais, apesar de se pretender que o mesmo seja de distribuição gratuita.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

QUE PELO MENOS SE EXALTE A MEMÓRIA DE QUEM BOA MEMÓRIA NOS DEIXE

O homem do chapéu de coco tirou o chapéu e sentou-se, como era de sua particular opção há muitos anos, naquele mesmo banco de todos os dias, voltado ao rio, ao meio da mesa de madeira, talvez de faia, do jardim municipal. Na mesa pousou um baralho de cartas, e sobre ele, como se o escondesse de olhos indesejáveis, pousou o chapéu. Olhou em volta, retirou um livro de um dos bolsos do casaco e dedicou-se, a partir de então, ao velho culto de entretecer os próprios pensamentos com os de outrem, os do autor do texto, o que se poderia inferir pelos sorrisos, pelas contracções faciais, pela sobreelevação assimétrica das sobrancelhas, pelo tremeluzir ocioso das pestanas. Convém informar que antes de nele tomar assento, qual ritual de nascença incógnita, o homem do chapéu de coco, por precaução, desdobrou e estendeu no banco um lenço de alvura ímpar.
Daí a instantes, a coxear de ambas as pernas, ou a caminhar como se o chão estremecesse a cada passo e necessário lhe fosse vincá-los um por um, o homem do boné aos gomos e óbvia bengala cumprimentou o homem do chapéu de coco, mal tocando com a ponta de dois dedos na pala do boné, e sentou-se no banco do lado oposto, de costas para o rio e para a frescura da brisa de lá proveniente. Só isto justificaria a demasia de roupa, nesta altura do ano, com que o homem de bengala e boné aos gomos se enfarpelava. Registe-se o pormenor de ele se ter sentado directamente na tábua, talvez de freixo, do banco. A pintura, em esmalte verde e decrépito, não daria para ver. E lenços de alvura ímpar, como o do homem do chapéu de coco, não abundam. Depôs o binómio bengala e boné no espaço ao lado das nádegas, e ficou-se em contemplação atenta das feições do homem do chapéu de coco dado à leitura, a antecipar-lhe os trejeitos mínimos, os esgares de nenhum peso, a trégua de arcadas em perscrutação profunda. Ainda se tivesse trazido um jornal ou uma revista. Mas não trouxe. Nunca trazia.
Um minuto após a devolução da acalmia gestual à paz possível num jardim público, surge lá ao fundo o homem da boina basca, também ele a manquitar de modo brando. Fuma cachimbo e traz à ideia uma velha traineira mais ondulante que as ondas e a requerer cais final e sossego, onde de vez se desmantele a noção do dever cumprido. Com a boina de píncaro erecto na mão, saúda os antecessores e logo trata de ocupar o posto de sempre, à direita do homem do chapéu de coco e à esquerda do outro, o do boné aos gomos e bengala. E como ainda não é proibido fumar nos jardins da urbe, despeja o morrão de cinza na relva e reenche a fornalha para nova ida à pesca no alto-mar. Um dia há-de vir e ele sabe em que a nuvem de fumo será tão densa, que ninguém o verá, nem ele, de regresso ao cais de abrigo. É afim da teoria, entretanto, de que a madeira utilizada na construção da mesa e dos bancos é de choupo. Mas não insiste. Não acha que o pleito lhe mereça a sujeição à demanda de indícios comprovativos debaixo das mil e muitas camadas de tinta averdungada de tão antiga. E também se não preocupou com a possibilidade de se sentar sobre a caganeira esvoaçante de algum pássaro, se lenço nenhum traria consigo.
Meia cachimbada depois ou nem tanto, no palco arenoso e relvado, o último actor previsto no guião sobe à cena. Tão para lá do tempo que vale a pena como os outros, não tem chapéu nem cabelo. Dir-se-á até realizado com a assunção da calvície total, do género inexorável, sem a mais remota penugem. Volvido o quase tumulto dos cumprimentos de quem chega a quem está e vice-versa, preenche então o derradeiro lugar à mesa, que ele interpõe como feita de carvalho, nem mais. Dos quatro, sopesando a chamada lei das compensações, afinal, é o único que usa bigode, já branco e acastanhado no meio por causa do que se sabe. E com a entrada deste último actor, que lenços só para assoar o monco, chega ao fim a primeira parte do drama. Salte o baralho para o meio do terreiro, que agora a leitura vem a ser outra. Uma calva de bigode a compensar e uma boina basca, formando equipa contra um chapéu de coco e um boné aos gomos com bengala. Todos os dias, no remanso do jardim municipal, desde há décadas.
Foi como se o piloto, ejectado a horas, antes tivesse tomado por alvo aquela mesa (de pinho vulgar, segundo o relatório) em que o avião se despenhou. Confrangedor foi descobrir que eles tinham combinado e jurado a quatro vozes que nenhum dos quatro incorporaria o funeral de qualquer deles. Mas foram os quatro a enterrar ao mesmo tempo, e ali, na cratera, foi-lhes erigido um memorial, em pedra, no qual se irmanam um chapéu de coco, um boné aos gomos com bengala, uma boina basca de píncaro em alvoroço, e a lisura de uma bola de bilhar, toda ela luzidia, com bigode.

domingo, 3 de agosto de 2008

NUA NARRATIVA SINGULAR SOB INSPIRAÇÃO GENÉTICA QUANTO À NUDEZ

Seriam vinte os degraus, de madeira antiga, entre cada piso. E o piso dele era o terceiro. Quarto independente, com a porta directa para as escadas. Um privilégio. Horas de entrar ou sair, sem olhos plantados na rigidez sonâmbula de quaisquer ponteiros. Quanto a companhias, durante a lonjura da noite ou mesmo de dia, isso é que não. Nem um amigo de passagem pela cidade, velho ou novo, um colega de ofício a invocar-lhe o préstimo de ensinamentos, algum parceiro de noitadas ao relento em fase de ganhar balanço para a subida ao cume de mais uma. E daí, porque os escribas bíblicos assim propuseram, a tentação de prevaricar e mordiscar a fruta também seria uma constante.
Primeiro, às escuras, a apalpar todas as frinchas de luz e a contar um por um os degraus todos, sessenta, subiu ele, porque inquilino, e logo com direito a dispor de chave própria. Instantes depois, na ponta dos pés e de idêntico modo na treva, contando e descontando os sessenta grunhidos, grasnidos, relinchos de outras tantas tábuas pisadas, lá se empertigou ela, em epopeia de esgares nem imagináveis, no martírio promotor de uma ascensão a repartir, de preferência, em duas partes iguais. Algures, subscritas pela brisa nocturna, quatro badaladas.
Uma hora mais tarde, quando no eco ainda ululava o sobressalto das cinco pancadas de bronze e se lhe juntou a traição das dobradiças da porta do quarto no vácuo obscurecido das escadas, a luz acendeu-se, de súbito, e pôs a nu e a cru o projecto de fuga então em prática. Ia já a descida desde os jardins celestiais até à rua aí pelos trinta degraus, entre o segundo andar e o primeiro, e a todas as portas, entreabertas e à espreita, se lhes escancarou a boca: com um pé pousado no ar e o outro na podridão da escadaria, um homem todo nu, todo encolhido, todo arranhado, procurava tapar com as mãos todas o tudo à vista de quantos viriam acompanhando, desde há uma hora, todo o frenesim de batuque audível no terceiro andar. Quando ele se virou, em busca dos últimos trinta degraus a caminho da incógnita da madrugada ao ar livre, mostrou a chaga das costas a escorrer sangue.
Aquele quarto, afinal, além da porta para as escadas, tinha outra para o interior da casa. E foi por esta que a dona da pensão conseguiu não se precipitar no alçapão do escárnio rente às cinco da manhã. Olha se o marido acordasse da ressaca, como teria acordado todo o prédio, e desse com a friagem dos lençóis no lugar dela. E do inquilino de cor escarlate, que ainda não pagara a renda do mês e por lá deixou ficar malas e tudo, é que ela, a fera, nunca mais soube.
Dizem ter sido ela a acender a luz das escadas, doida de cio, quando o rapaz, em pânico, se lhe furtou das garras e preferiu a ignomínia da noite sem roupa nem frio.