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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 13 de abril de 2009

BOSQUEJO DE ASSALTO À MÃO ARMADA COM FOGO REAL E PONTARIA NENHUMA

Tirou os óculos e pousou-os sobre a mesa. Depois, como se muito lhe importasse o cumprimento de um ritual tão provecto como o próprio recurso ao uso de óculos, começou por massajar em jeito lento a cana do nariz entre o polegar e o indicador da mão esquerda, pretendendo aplainar em segundos um vinco de horas. E no mesmo ímpeto, agora com quase todos os dedos de ambas as mãos, remoeu até aos limites do massacre as conjecturas que na languidez das pálpebras seriam já remela de lágrimas sem carga interior. Apenas lágrimas destinadas a regar as flores nas águas-furtadas dos olhos, e não o fluído revelador de quanta mágoa se instale lá por dentro, onde flor nenhuma (talvez por obra do sal) logrará sobreviver. E a rematar, deixou cair a cabeça na solidez do tampo, entrecruzando os dedos contra a nuca: imagem por excelência da misantropia como opção, que o mesmo equivale a dizer como estratégia de progressão pela vida abaixo, que não acima ou em frente. Seja a pé, seja de gatas, seja a rastejar, seja às arrecuas. Seja como for o plano inclinado onde se tome balanço e se mergulhe no espaço de ascensão à incógnita suprema.
A noite vai adiantada em relação à fidúcia dos ponteiros. É para isso, e não só, que serve o manto de cinza das nuvens: adiantar a hora em função da premência de esconder, na escuridão total, o que à luz das conveniências seja melindroso assumir. Porém, como esconder de si próprio o tremor do vácuo mental? Nem será a cama, em companhia ou a sós, a solução. Qual mineiro chegado ao nível dos antípodas, ou seja ao ar livre no hemisfério oposto, de pouco lhe valem a picareta e o arreganho infligido aos braços, se o minério arrebatado às vísceras terrenas não chegará sequer a fumo, ao revelar-se como inócuo, sem massa ponderável, sem fórmula íntima. E cavar mais, no sentido das nuvens, também tão perto já de serem charco outra vez e rio e mar, é no mínimo irracional. Morte à imbecilidade. E porque não um banho súbito de água fria, assim mesmo, com roupa e tudo? Não deixará de ser tema, ao longo dos anos ainda em pauta, para eventuais lavagens da memória, se profanada pelo avesso da inventiva.
Abre a janela para a vastidão de quanto se vislumbre através dela. Os candeeiros, sentinelas meio dormentes meio despertas numa guarita livre da ameaça de rondas, tremeluzem sem convicção nem cuidados de maior instância entre revoadas de mosquitos, enquanto refutam a função de perfurar e anular a noite em torno. Bastar-lhes-á — diriam eles a quem tanto assim lhes perguntasse —pôr a neblina reinante ao seu serviço e com ela criar uma ilusão de luz, que mais não é que isso mesmo: uma ilusão luminosa. Fogo-fátuo que a manhã, abrupta, logo se encarregará de desmentir ou de restituir à lenda. A noite, contudo, questionada a partir de qualquer janela, de dentro para fora, sempre há-de ser um convite à exaltação do que a transparência dos olhos se recuse a interpretar sem a muleta das lentes.
E agora, como se desde o início nem fosse outra a pretensão em jogo, alça as pernas, uma de cada vez, para cima do parapeito, e logo ali se senta e se deixa ficar, absorto, de pernas ao pendurão sobre o vazio, a balançar de estranho modo o tronco e o resto. Segundos depois, sem que se lhe escutasse o mínimo bafo em forma de brado ou de queixa, e também sem surpresa de ninguém, nem dele próprio, caiu no fosso escancarado em plena noite.
Não vivesse ele num rés-do-chão com quintal de hortaliças em volta, e o final da história seria bem mais feliz.