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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 30 de julho de 2006

O BEIJO, O VÍCIO DE SONHAR E A FALTA QUE PODE FAZER UM LENÇO LIMPO

Não seria um rapagão de inquebrantável postura. Até era magro, não alto nem baixo. A pele, naquele tom de quem viva os dias na moirama de montes e quintas sem muros capazes de lhe suster o impulso. Uns olhos obscuros de incógnita perante a obscuridade dos dias propostos, então, como presente e futuro. O cabelo farto e negro, aciganado, sem pente que nele pegasse e o convertesse a penteado de ir à missa e pôr uma moeda na caixa de qualquer santo careca. Quase dezasseis anos de incerta alimentação, mal vestidos e mal calçados, sem experiência motriz quando o instante pedisse um arranque em consonância, onde hesitações medricas, sob prévia evidência do rubor, nem por hipótese remota se pudessem tolerar. E a puberdade, essa ponte marota entre pasmo e punho, ainda nem há tanto tempo assim fora atravessada.
Ela, com mais três anos na vida. Tudo no sítio. A tender para o baixo e bem fornida. Branca de pele, não de ideias. Os olhos com maroteira de reserva para que se não espreite a vida como indelével sensaboria. Boca de puta debutante, relançando o riso dos olhos: o lábio de cima, a sublinhar um buço alourado, só perceptível quando o sol lhe dava a mão e o punha ao léu; e o de baixo, pendente, com um toque de chiste em contínuo, rematando a óbvia função de engodo.
Como único defeito―pensava ele―, tinha ela um namorado, desde as carteiras da primária, que só aos sábados à noite a procurava. Todos os demais dias estavam libertos, portanto, não havendo que recear a inoportunidade de alguma aparição não milagreira. E esse namorico já se arrastava há tanto, que tudo o que houvesse a descobrir estaria descoberto, só faltando a farsa do casamento para que a mentira não durasse, como seria natural, muito mais tempo.
No hoje que importa à história, e de que hoje já ninguém se lembrará mal ou bem, andam os dois, o puto e a aprendiz de puta, a passear de mão dada numa mata de cedros sem olhos predadores, como se andar de mão na mão―fruto proibido―seja bastante. E nem uma palavra, na boca ou nos olhos. Nenhum gesto repentino a dar a ouvir ansiedade à ansiedade. Ou pelo menos da parte dela, sabida, com muitos anos por conta do que nunca custou a aprender com a prática. Dele, talvez já o roedoiro íntimo seja outro, com a expectativa agarrada como lapa ao ensejo de viver pela vez primeira o que nem em sonhos se sonha, tão distante é a realidade vivida da simples pressuposição.
Por isso, quando ela de súbito se lhe põe à frente e o faz parar, se lhe dependura no pescoço e contra o corpo dele esmaga o corpo, com tudo o que sabe ser apetecível de esmagar, e lhe ferra um beijo na boca, ao jeito de quem sente estar a pisar um terreno nunca antes desbravado em vida alguma, somente lhe cabe, a ele, deixar-se ficar muito quieto, de olhos escondidos no sótão das pálpebras, desejando com ardor que este sonho palpável, palpante, palpitante, não se acabe nunca, não se desvaneça ante os primeiros raios de luz, não se esborrate em remela de bocejos e langor infindo.
Mas há-de esborratar, há-de desvanecer, há-de acabar. Antes, porém, enquanto a sucção se conservar activa e garantir a proximidade e até a utopia de mais alguma aproximação, há que tentar descobrir qual a rota marítima para a lua e mergulhar mar adentro, descer lá mesmo ao fundo das mais profundas fossas abissais.
Quando a aula chegou ao fim, uma hora mais tarde, naquele hoje tão distanciado que já nem ontem será mas anteontem, também pela vez primeira ele viu que os olhos dela não riam como até aí. Ela chorava. E nem lhe perguntando pela razão do pranto, abraçou-a com quanta força tinha e chorou com ela.

sexta-feira, 28 de julho de 2006

TOCATA PARA TRÊS INSTRUMENTOS DE CORDA E BAIXO CONTÍNUO

Eles são três. Estão estendidos na relva, sem nada mais por cima que a copa das árvores, além à esquerda, no parque. A noite, que não lhes foi malévola, ali os deitou. No Inverno, com chuva e ventania, nunca seria tão linear a proposição cenográfica.
Nem de vista eles se conheciam, e apesar disso não se guerrearam na disputa do espaço de acção. Quem sabe se eles não se tornam amigos, a partir de agora, e não se encontram mais vezes, por aí, e até se vão procurar, nesta lida temível que é a da sobrevivência na rua, debaixo de arbustos, pontes, viadutos, no bojo de carros meio desmantelados ou em recantos de becos onde nem gatos se vejam.
Qualquer deles terá metade da idade que aparenta. Cabelos e barbas cuja brancura, e sujidade, aleijariam a relembrança de quantos noutra época os conheceram, a pele mais engelhada que o cenho de credores desesperançados, uma magreza de gordos que aí há quarenta séculos fossem sepultados com vida.
O sol, não tarda muito, há-de dar-lhes corda e pô-los a andar, não vá aparecer a polícia com a conta do hotel. E é conveniente começar já a trabalhar, antes que sobre eles se instale a canícula. Tiveram ensejo, durante os pastosos minutos que antecedem o sono, de distribuir por cada qual os respectivos sectores de ataque. Um deles, o mais antigo no ramo, ficar-se-á pela baixa, até ao rio. Outro, também já radicado por cá há alguns anos, fará as avenidas novas e as zonas residenciais envolventes. E o terceiro, ainda não muito queimado na forja, andará perto daqui, sempre em volta do parque, batendo a selva de montras fixas e andantes que muito abundam nesta paróquia.
Que cada um trate de si conforme souber ou puder, seja vergado pelo peso de estender a mão aos passantes, seja de concertina em punho a fazer musicatas a metro, seja de óculos ceguinhos e bengala e chapéu com moedas tácteis e tácticas na calçada.
E aí vão eles, manquitando a fingir ou sem querer, cumprimentando toda a gente como políticos imberbes, procurando orientar-se através de estrelas que só logo à noite lhes brilharão, ou não, no olhar. Um, a caminho da frescura do rio. Outro, rumando ao desafogo de avenidas onde só mora quem tem. E o último, a espreguiçar-se até que os ossos rebentem e a mijar contra a árvore que o guardou do relento, antes de optar entre a lógica estratégica do anho acomodado ao pasto possível e o instinto de salvação do lobo ao saltar a cerca.
O céu nem sempre estará pelos ajustes para com quem o interpele de cá de baixo, ao nível da relva, e bem poderá punir-lhes a temeridade, logo mais, não os deixando ver estrelas e orientar a sua rota de todos os dias pelo labirinto das ruas de qualquer cidade.

quarta-feira, 26 de julho de 2006

VIAGEM A FUMAR DA TERRA AO CÉU EM VAGÃO DE NÃO FUMADORES

Pegou na pasta e na maleta de viagem e dirigiu-se à bilheteira. Depois de já ter o bilhete pretendido, foi até ao bar da estação tomar o último café antes do embarque. Aqueles crónicos cinco minutos de atraso do comboio sempre haveriam de servir para alguma coisa. Neste caso, a satisfação do velho vício chamado cafeína, quase sempre de parceria com o outro, o da nicotina, de cigarro à dependura de lábios gretados como vulvas em fim de rota possível, ou de cachimbo balanceado pela presunção, como no caso em pose, também dependente de lábios mais dúbios que vulvas sem descanso semanal nem sindicato.
Já reconfortado, rumou ao cais onde dentro em breve, e já lá iam dez minutos, deveria chegar o foguete que o levaria, ninguém sabia para onde. Nem até quando. Ou sequer se pensaria regressar ou não.
Sentado num daqueles bancos corridos, na gare, onde toda a gente se senta sem pedir licença, tirou um livro da pasta e procurou disfarçar com ele a crescente irritação que sentia. Nunca nele se reconhecera a raríssima virtude de saber esperar. E o atraso, sempre mais lesto que o maquinista faltoso, atingia já a estranheza dos vinte e um minutos, sem que nos altifalantes ressoasse a menor explicação.
Reacendeu o cachimbo, restituiu o livro à pasta, levantou-se do banco e deu uns passos sem nexo, atordoado. Olhou o relógio de pulso e quis confrontá-lo com o da estação, que de tão longe nem se lia, chegando mesmo assim à resmoneada conclusão de que tanto um como o outro lhe acenariam um atraso de trinta e cinco minutos.
“Filhos da puta”―, gritou-se entre os dentes, enquanto verificava que alguém se sentara no lugar dele, o único disponível em todo o banco, ocupado que estava por fulanos indefiníveis e tropas, fazendo alarido como se o resto da vida se reduzisse àquele fim de semana. Agarrou a mala e a pasta com olhos armados de lança-chamas, decidindo então ir pedir contas à bilheteira, ou ao chefe de estação, pelo escândalo do atraso de quase uma hora em relação ao horário afixado.
“Provavelmente, o senhor ter-se-á esquecido de atrasar o seu relógio uma hora”―responde-lhe com finura e paciência o funcionário, lá por detrás dos óculos―, “como está acordado que se faça, em determinada data, algum tempo depois do equinócio de Setembro”.
Sentiu-se desfalecer, de tão irado. Mas conteve-se. De facto, confirma agora, de perto, o relógio da estação marca uma hora menos do que o que lhe rói o pulso. O melhor a fazer é serenar as ideias, tirar partido da confusão para tomar outro café, preparar uma nova cachimbada e regressar ao cais de partida, onde a algazarra de fardas e não fardas, no banco e fora dele, continuará. E, antes de tudo, não se esquecer de acertar o relógio pela hora actual.
Ao atravessar a linha, ainda desaustinado pela estupidez da cena que fizera, apareceu do nada uma composição de mercadorias, carregada de carvão, que o levou à frente, com cachimbo e tudo. Os altifalantes tinham informado, minutos antes, da iminência da sua passagem por aquela estação, sem paragem.
Mas o bilhete dele era do foguete.

segunda-feira, 24 de julho de 2006

CORREIO DE TARIFA A PAGAR NO DESTINO E NA HORA

Absorto e quedo, como se os olhos tivessem passado do estado liquído ao gasoso sem de tanto se aperceber, num banco de jardim. Aliás, é para isso que servem os bancos de jardim: pôr a ferver e fazer sumir no ar os olhos de quem já se canse de contemplar o trivial.
Uma folha de plátano cai-lhe no regaço. E a abstracção desfaz-se por segundos, quando desce lá das nuvens e pousa na folha. Não se trata de uma folha qualquer. Vê-se nela alguma coisa escrita. Uma palavra, um código, um nome. Só que numa língua distante de mais para que se lhe torne palpável pelos olhos. O que quererá dizer? E quem a teria escrito? E como veio ela até ali aninhar-se-lhe no regaço, se não corre um ar, se nenhuma árvore cobre o banco onde se senta, nem nenhum pássaro a deixou cair de passagem, seria capaz de jurar?
Tira a carteira do bolso e guarda a folha, sem a dobrar, como se fosse uma fotografia. Pode ser que a seguir à folha lhe caia no regaço a mão que nela escreveu, e ele possa também guardá-la na carteira, como se fosse uma fotografia, sem a dobrar.

sábado, 22 de julho de 2006

DO SEGURO A MORRER DE VELHO AO QUE SEM ELE FAZ NASCER

O orgasmo apanhou-o, por mais que porfiasse em segurar-se, quando mal acabara de se entranhar nas profundas da floresta. E agora, que remédio senão procurar manter o aprumo, disfarçando a ocorrência e reformulando a porfia, rebuscando imagens sensuais arrecadadas na memória, mergulhando até aos antípodas num passado sempre farto e generoso, ou condescendente, em experiências como esta. É sempre bem mais gratificante a conquista, quando antes dela for obrigatório arreganhar garras e dentes para que a mesma se dê e a peça de caça caia sem bulir no matagal.
Ora, seguindo a talhe de foice, como soe dizer-se por aí, e por falar de experiências, faltar-lhe-á ainda sofrer o pânico de querer ter-se de pé e não ter o quê, quando perante algo cuja imponência não se amofine com falências de nervo ou de espírito. Até hoje, por fortuna, nunca se sentiu Tântalo a morrer de sede à beira do riacho, querendo saciá-la e já nem boca tendo para tal.
Este outro caso, no entanto, em que a sofreguidão desata os nós e dá ordem de ataque à marinhagem antes da hora, já aconteceu noutras alturas, aqui ou além, sem que a estrutura estremecesse no instante de restaurar o equilíbrio das forças em parada. Mas isso era naquele tempo em que ao mínimo ensejo de matar a mosca, morria a mosca e nem uma asa de protesto se lhe ouviria.
Hoje, já a conversa é outra. Outras são as referências. Outros valores fazem crescer ou definhar intento e acção correlativos, sob vigilância apertada de quem tal acção por tal intento não queira ver encoberta e substituída, seja qual for a desculpa invocada: sono ou cansaço, fome ou fartura, fastio ou carência de engenho motor.
“Não me digas que usaste sempre o mesmo preservativo durante uma noite inteirinha”―, diz alguém a alguém, já de manhã, mal o sol abriu a janela e deu a ver, em simultâneo, um rosto ainda afogueado, talvez ainda aquém do rescaldo de consumação do incêndio nocturno, e um outro a fingir que dorme, sorrindo, de pazes feitas consigo.

sexta-feira, 21 de julho de 2006

O HÁBITO SÓ FAZ O MONGE CONFORME A ORDEM PALAVREIRA

O que ele queria era ter um novo carro. Fosse qual fosse a marca ou o modelo, desde que fosse novo. Pouco lhe importaria não arranjar casa a tempo do casamento já na rampa. E talvez nem o perturbasse assim tanto perder a namorada, noiva, futura mulher. Nem nada o afligiria ficar no desemprego o resto da vida. Ou que a família lhe desse com a porta na cara e o ignorasse. Ou que os velhos amigos o abandonassem sem a menor explicação comportamental. Ou que o seu clube descesse até à subcave dos distritais. O fundamental era conseguir o privilégio de ter um novo carro, novinho em folha.
Fatídico seria que perdesse, como perdeu, a hipótese de fazer um belo casamento com uma lindíssima mulher. Assim como se adivinhava já que a breve espaço ficaria sem o razoável emprego que tinha. E seria de prever que toda a família desistisse de lhe alimentar as veleidades e os caprichos sazonais. E que nem os amigos de infância superassem tamanha obstinação em ele se vestir de automóvel a estrear.
o clube lhe perdoou a indiferença comparativa, ganhando a taça no dia em que ele enfim comprou o carro.
Mas como antes não tinha carro algum, velho, meio usado ou pintado de fresco para que novo lhe parecesse, também desta feita, ainda que tivesse comprado um carro novo, não comprou um novo carro.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

NO COMBOIO DESCENDENTE A PREÇO DE FIM DE ESTAÇÃO

“Ainda dou comigo, por vezes, a esconjurar os meus fantasmas”―, diz de súbito o do meio, quebrando um silêncio de alguns minutos, como se a continuidade da conversa estivesse em perigo de sufoco. É ele o mais alto dos três, e também o único que já não dispensa a bengala.
Os outros dois, não mais novos nem mais velhos que o companheiro, vão caminhando com as mãos cruzadas atrás ou à frente, ou metidas nos bolsos, ou ao pendurão, bamboleando à mercê da gravidade, sem maior utilidade que a de apontar no chão a própria sombra.
Todos os dias se encontram no mesmo local e à mesma hora, depois da sagrada adoração do almoço em casa de cada qual, desde que um dia, já lá vão trinta anos, o comboio da reforma lhes reservou lugar à janela até ao último apeadeiro, que poderá nem ser o mesmo para os três. Eles eram cinco, no início, mas dois houve que se apearam nos seus respectivos momentos de descida, e a viagem destes, por ora, lá vai prosseguindo a sua marcha, inexorável, até um dia.
O trajecto escolhido para este passeio através da decrepitude―todos os dias igual ao de todos os dias, o passeio, todos os dias maior que a de cada dia já ido, a decrepitude―, é o da alameda central ao longo do parque da cidade, com bancos de socorro para eventuais paragens e árvores com sombra e fresquidão, se o sol, não por maldade, decerto, a tanto os obrigar.
“Que eu nem me acredito em fantasmas”―, diz o do meio, cansado de nada dizer. Ou de nada obter como resposta dos parceiros, sempre de mãos cruzadas à frente ou atrás, ou metidas nos bolsos, ou a apontar a sombra no chão à mercê da gravidade.
Destes dois, sem bengala por enquanto e mais baixotes, diga-se ainda, para mais veloz entendimento de quem com os três se cruze, um dia, seja onde for, no parque ou num dos tais apeadeiros de embarque por aí à espera de alguém, que ambos são surdos-mudos de nascença, ou quase. Um deles, embora nascido mudo, não era surdo de todo. Mas curou-se: por uma questão de empatia com outros e de coerência ante a inutilidade do que lhe era dado ouvir, resolveu ensurdecer de vez.

sexta-feira, 14 de julho de 2006

ANTEPROJECTO DE LIMPEZA POR CONTROLO REMOTO

Ao chegar lá acima, sentiu-se esmagado pela panorâmica. Aquilo iria muito além do que as perspectivas lhe fizeram crer. Até apetece viver num mundo assim, definido por um quadro de tal magnificência. Não haveria lugar para a melancolia, havendo ao dispor dos olhos, a todo o instante, uma benfeitoria como esta, em que a beleza e a imensidão se aliassem e se deixassem usufruir, sem nada exigir em troca.
O cimo do monte é uma penedia de granito, agreste mas bela, severa, nua, empolgante, que de repente desaparece na vertical descendente e só se torna a descobrir no fundo, a oitocentos metros ou mais. Só há um tosco carreiro, na vertente oposta, que até lá ao alto conduzirá quem tamanho arrojo se imponha como meta final. Dali para diante, só o vácuo da inexplicabilidade, se nem para as vertigens há-de haver tempo e disposição.
Se propensões tivesse para eremita, seria este o lugar fora do mundo que dentro do mundo escolheria como morada. Essas propensões, no entanto, vêm e vão com a mocidade, enquanto se creia ser possível a salvação do planeta e outras parvoeiras de similar insignificância em tal tempo de utopias e demais febres sem graça.
O que o trouxe aqui, hoje, num dia bonito, luminoso, transparente, de inexcedível nitidez para quem adore embevecer-se na contemplação da natureza? Alguma ideia tão fixa como a de não querer descer pelo mesmo carreiro, talvez tosco e rudimentar mas único, que o trouxe, passo a passo, desde o sopé mais rasteiro até aos píncaros desta velha indecisão a ganhar corpo e ensejo de se decidir de vez?
Não querendo descer pelo carreiro, como descer então? Só se for pela vertente quase vertical, de oitocentos metros ou mais, com os braços bem abertos como se fossem asas daquelas de voar a sério. Vamos lá, pois, antes que anoiteça e se ponha frio.

quinta-feira, 13 de julho de 2006

ONDE SE PROVA QUE NO MELHOR PANO CAI A NÓDOA OU AO INVÉS

O senhor da loja de fazendas, depois de correr todos os ferrolhos por dentro e de fechar as três fechaduras da porta, duas em cima e uma em baixo, junto ao chão, foi para casa. Não morava longe, mas já lhe começava a pesar aquela distância quatro vezes por dia.
Já a meio da viagem, que seria a última de hoje, acudiu-lhe a dúvida acerca de ter apagado ou não a lâmpada do armazém, nome pomposo dessa escassa divisão ao fundo da loja, onde guardava o material antes de estar seleccionado, etiquetado, pronto a vender. E porque a vespa da incógnita zumbe mais que as verdadeiras, encolheu os ombros e lá deu a volta aos passos, tornando a soletrar sem gosto aquele fado das pedras da calçada de que já julgava estar livre.
Após reabrir uma a uma as três fechaduras, entrou na loja e seguiu o balcão até lá ao fundo, quase às escuras, deixando apenas encostada a porta da rua. Não voltou a sair pelo seu pé.
Segundo aqueles detectives sem crachá nem lupa, que logo se fazem ouvir a si próprios massacrando outrem, o assassino terá entrado na loja pela porta principal, que o velho deixara mal encostada para ter alguma luz. Não há provas disso, entretanto. Nem testemunhas que lá tenham visto entrar alguém como se fosse a sombra dele.
Outros, tão especuladores como os especialistas que nada sabendo de nada tudo garantem, teorizam que o criminoso lá se escondera antes do homem fechar a loja, e que foi apanhado em flagrante quando ele, sem desconfiar de nada, abriu a porta e entrou.
Como não desapareceu coisa alguma, além da vida do velho, deu-se o caso por encerrado, logo no dia seguinte, quando a autópsia revelou a insuficiência cardíaca de que ele nunca se queixara. Quanto à marca de dentes nos lóbulos das orelhas, no pescoço, no peito, e aos chupões repenicados nos braços, nos ombros, no ventre, ou um pouco por toda a parte, se até nas costas havia sinais de dedos e unhas cravados com frenesi, tudo se viu interpretado como evidentes indícios de alergia à naftalina, tão usada na loja contra a traça. E sobre as peças de fazenda estendidas no chão como enxerga de improviso, por trás, na divisão denominada armazém por simpatia, foi a própria viúva que tratou de as explicar como o local onde ele muito gostava de dormir a sua sesta. Quem lhe tirasse a sesta―sobrecarregava ela, chorosa―, tirar-lhe-ia o melhor pedaço do dia.
À boca calada, porém, toda a gente se perguntava quem teria sido ela, a naftalina encaprichada em pôr-lhe asas e pô-lo a voar até aos mares da superfície lunar, sabe-se lá, onde ele já adivinharia que mais tarde ou mais cedo acabaria por morrer afogado, com certeza, mas contente, muito contente. E de sobremaneira estranhava-se a expressão fria e o ar de completa indiferença da viúva, se bem que carregada de luto, se se lhe punham hipóteses de ter sido esta ou aquela.
Tudo se esclareceu quando alguém conseguiu descobrir, um dia, sem se saber por que processos, que não foi uma: foi um.

segunda-feira, 10 de julho de 2006

NEM TODOS OS QUE SÃO LÁ ESTÃO, NEM TODOS OS QUE LÁ ESTÃO SÃO

Ser actor é viver muitas vidas e não viver nenhuma, pensa um. Essa é fácil de mais, pensa outro, enquanto descasca uma tangerina e a mete na boca, gomo a gomo. O bom actor, por se saber obrigado a ter uma dicção perfeita, não pensa com a boca cheia, pensa o terceiro, olhando todos sem olhar ninguém. A não ser que isso esteja integrado no papel que lhe caiba desempenhar, pensa o segundo, preparando o segundo ataque a uma segunda tangerina. Qualquer artista que se preze, pensa outra vez o primeiro, seja ele actor, bailarino, músico, pintor, palhaço, escultor, arquitecto, ilusionista, mágico, carteirista ou político, vive e morre da ficção para a ficção. Ou em ficção e pela ficção, diverge agora o terceiro pensador, de olhos fincados numa tangerina, talvez a sexta, que alguém descasca e absorve, gomo a gomo. Pensas tu então que o artista, pensa em sequência o quarto a saltar à estrada, passará a vida, de lés a lés, a inventar-se, a reinventar-se, a contemplar-se com olhos diferentes de cada vez que se veja ao espelho. Essa dos olhos até nem está nada desengraçada, pensa de novo o primeiro, espécie de mentor do grupo. Também eu gostei bastante daquela de terminar a lista dos hipotéticos artistas com o carteirista e o político, pensa o das quinze tangerinas a eito, limpando os beiços com despudor às costas da mão direita e mal disfarçando um arroto com a esquerda.
Estão os quatro sentados na relva, à sombra dos cedros. E ainda lá se vê um outro, deitado de costas, a dormir. Tinham combinado que este seria o quinto a intervir no debate pensante. Mas adormeceu, como é visível e audível no sopro cedros acima, antes do esforço de exprimir o que muito bem lhe aprouvesse, pensando, acerca do tema aprovado para hoje, na pretérita semana, por unanimidade. Há fortes suspeitas nesta assembleia de que não tornará a ser convocado.
Para sossego de possíveis visitantes, convirá informar que estes cinco não estão internados no pavilhão dos mais perigosos.

domingo, 9 de julho de 2006

DAS AGRURAS DO OFÍCIO DE POETA ÀS DE ÁS EM VELOCIDADE

O poeta chegou à aldeia ao anoitecer. Ainda teve tempo, na taberna, de arranjar quem lhe dispensasse um palheiro onde dormir. “Só esta noite”―, diz-lhe o dono, um misto de cepo e de gente, a remorder um palito. “É para enganar a boca por causa dos cigarros”―, confessa ele a quem nada lhe perguntara, depois de se ter informado sobre quem será e o que fará na vida aquele forasteiro, magricelas e macilento, de cangalhas de arame mal encavalitadas sobre uns olhos encovados até ao avesso das pálpebras.
“O que é isso de ser poeta?”―permite-se perguntar agora, senhor da situação a partir da oferenda do palheiro, ao viandante, assumindo-se como porta-voz de quantos por ali estão, e serão só todos os que no povoado, não contando as mulheres e os cachopos, habitarão. Aí uns onze ou doze, não mais.
O poeta, observando num relance a ambiência, viu-se entre gente de terra e estrume, talvez sã mas rude, onde o amanho de mínimas leiras sem ar e o pastoreio quase sem gado hão-de ser sustento e objectivo único em vida. O mais plausível será a aproximação, pensou.
“É ser-se pastor de si mesmo”―, responde o sitiado aos sitiantes, com os olhos fixos nos olhos de quem, sem nunca apagar o sorriso de cepo e de gente à mistura, lhe inquirira o mester. “É andar sobre montes e vales”―prossegue o réu, beberricando um gole―, “em busca de erva a fingir, para matar uma fome que na verdade não se sente”.
Da parte da bancada de jurados, nem um pio. Haverá que ouvir toda a alegação, para depois retirar ilações e decretar o veredicto: culpado sem culpa de ter nascido ou inocente por motivo igual.
“É zurzir o próprio lombo à cajadada”―, continua o arguido, olhando os outros olhos sentados em redor ―, “se se cede à tentação de comer todos os dias, à mesma hora, no mesmo pasto, fingindo ou não”.
No improviso de sala de audiências, a taberna, por indisponibilidade das impossíveis numa légua em torno, só as moscas noctívagas dão a milionésima volta à lâmpada e dão a escutar os zumbidos, enquanto o orador abre pausas para aguçar as unhas ao verbo.
“É balir a quem nos ouça, se se sentir fome a sério. Daquela que nos rói o forro ao ventre e mostra a nossa nudez de mortais, igualzinha à de toda a gente”―, proclama então, sorvendo de uma só vez o que lhe resta de vinho no copo, este auto-instituído juiz em causa própria que como réu já condenado aqui chegou.
“E onde é que está o cajado?”― pergunta o inquiridor oficial, sempre com aquele sorriso de gente e de cepo numa só medida, alardeando a confiança dos vencedores indiscutíveis, donos do campo de luta.
“Está aqui!”―diz o poeta, de pronto, pousando a mão na braguilha das calças, como se agarrasse aquilo que lá por dentro se oculta, murcho ou a denunciar-se à grei pelo volume do inchaço.
Dizem os habitantes das várias povoações a seguir, situadas ao longo da estrada de retorno ao mundo, que nunca viram ninguém passar a correr tão depressa como aquele magricelas, macilento, de cangalhas quebradas sobre uns olhos esbugalhados até ao avesso das pálpebras, a camisa feita em farrapos e as calças sem uma das pernas.

quinta-feira, 6 de julho de 2006

DA GERINGONÇA DE A.GRAHAM BELL & Cª. AO QUERIDO TATARANETO

Pegou no telefone, de modelo um tanto ultrapassado pelo febrão das derradeiras modernices por aí em voo, e algarismo por algarismo, de maneira irritante de tão arrastada, marcou um número. Porém, pelo menos de imediato, ninguém respondeu. De qualquer modo, também de imediato, não desistiu.
Se lá na outra ponta alguém viesse a atender, por certo seria uma voz feminina e meio enrabujada, não agressiva, que logo lhe perguntaria por que carga de água é que ele só se lembrara de lhe telefonar a uma hora daquelas, já tão fora de horas de fazer saltar da cama fosse quem fosse, fosse qual fosse a razão.
Também poderia tratar-se de outra voz, também de mulher, que lhe cuspiria no ouvido quantos palavrões soubesse, considerando a hora da chamada e não somente. Motivos outros, e de peso, soterrados nos areais movediços da memória, dariam justificação à contundência da nomenclatura nesse atendimento tão personalizado.
E ainda se poderia alvitrar uma terceira hipótese de voz, bocejante e feminina, como as anteriores, mas pacífica e paciente, sem a mínima acentuação de tom crítico em relação à hora. Algum susto, isso sim, e o correspondente sobressalto de difícil debelação.
Isto, contudo, lendo a história com lunetas das antigas, daquelas em que os finais felizes as fariam embaciar de comoção. Através de mais modernas lentes, das obscuras para subtracção de olheiras matinais ou de após pitada de pó, já a conversa exigiria outros dentes.
Vamos admitir que em qualquer das três proposições se teria ouvido, no lado de lá, uma voz de homem: que diria a voz do lado de cá à voz ouvida? Esgrimiria entre dois pigarros um “desculpe, parece que me enganei no número”? Ou atiraria com o telefone, de modelo um tanto ultrapassado, contra a parede, e voaria até ao lugar do crime, a título prévio, já que o crime só aconteceria quando lá chegasse?
No primeiro caso, o da amante local, talvez ainda não convencida de que nem passará disso, a questão só se resolveria com um tiro a cada qual. Como é que poderia minimizar a infâmia da traição perpetrada por quem ele vinha vestindo, e despindo, há tantos anos?
No segundo caso, o da própria mulher, já desenganada de o ter como marido e pai dos filhos que não teve nem terá, o problema mereceria requintes de solução por arma branca. Como é que toleraria olhar-se ao espelho, dali para a frente, sem que se ouvisse mugir? Uma facada em cada um, e prossiga o arraial, antes que chova na eira.
No terceiro caso, o da mãe, viúva recente e ainda com corpo e alma a pedir olhos com mãos ou vice-versa, já o assunto não se apresentava tão fácil de arrumar a contento de todas as partes envolvidas. Matar a mãe, só por ela manter um amante? Matar o amante da mãe, porque amores serôdios só na literatura e no cemitério? Não será preferível, em casos tais, o recurso a venenos subtis, a instilar gota a gota, dia a dia, até que os sinos dobrem sobre a viagem final em duplicado?
Como que respondendo a estas questões de latejante inconvicção no relativo à obtenção de resposta, ouve-se o cantarolar ranzinza de um qualquer telemóvel num qualquer recanto da casa, recanto para onde se dirige sem pressa, depois de pousar o auscultador nos respectivos ganchos metálicos e de formato antiquado.
Afinal, com o telefonema para um número ainda mal memorizado, só pretendia localizar o brinquedo cuja pequenez assusta, tão grande é o poder que nele se oferece. Quanto ao mais, não passa de especulação, quiçá por complexo de culpa de modelo já um tanto ultrapassado.

segunda-feira, 3 de julho de 2006

NÃO HÁ BELA SEM SENÃO NEM SENÃO QUE ACENDA A VELA

Aquela senhora, como se vê, tem um tique. E é pena. Quando jovem, deve ter sido lindíssima. Uns olhos enormes, amendoados, salientes. O nariz, arisco, irrequieto, como se cheiros vadios lhe desafiassem as funções. A boca, tão bem desenhada e colorida, que dispensaria sem temor os artifícios da pintura. Cabelos, talvez hoje distantes da cor de origem, mas em seu tempo capazes de suscitar apetites ou inveja em quem os visse passar. E um corpo esbelto, está visto, com tudo o que se pretenda nas suas devidas dimensões. Só o tique estaria a mais.
Numa sucessão quase momentânea, pisca o olho esquerdo, a seguir o direito, e avança o queixo sobre a clavícula desse mesmo lado, como se com um gesto indicasse tal direcção a alguém perdido. Parece que até houve uma história, naquela idade de que sempre ficam histórias a contar e a recontar e com mais e mais acréscimos enfáticos, em que um rapaz lhe pediu uma informação e ela, com o queixo, lha deu. Só que, nesse trágico caso, à direita dela passava o rio, e o rapaz, oriundo ninguém sabe de onde, não sabia nadar.
Também se conta que o seu primeiro namorado a deixou, derrotado pela zombaria dos amigos, afinal uns despeitados. E que no segundo, um daqueles meninos nascidos em dias de sol até de noite, terá sido toda a família a massacrá-lo contra o tique. E que no terceiro, foi ela a cercear-lhe as pretensões, cansada de ver e ouvir risos clandestinos entremeados por mimos sobre as mentirolas usuais. E que o quarto, um rapagão acanhado, nervoso, complexado, tinha um tique igual ao dela, mas virado no sentido oposto, o que complicava a simplicidade dos beijos com um caricato desencontro das bocas. E que o quinto e o sexto e quantos mais foram, e foram muitos, todos se foram untando de rubor, ao passear em lugares públicos, e desistindo daqueles olhos amendoados, salientes, enormes, daquele narizito arisco e inquiridor de cheiros vadios em volta, daquela boca túmida e rubra ao natural, daqueles cabelos sedosos onde apeteceria mergulhar, daquele corpo cujas formas tanto de tudo prometeriam. E daquele tique.
Ficou solteira. E dos namoricos todos, só sobrou um filho. Do que era acanhado e tinha um tique igual ao dela, mas para a esquerda. Teve a sorte, este catraio, de herdar dos dois os dois tiques, que assim mal se percebem, aparentando apenas que ele olha para um e outro lado ao atravessar uma rua, por exemplo. Ou ao ver uma partida de ténis, de pingue-pongue e até de arreganhados matraquilhos. Ou ao nadar na piscina, bastando-lhe sincronizar as braçadas com o ritmo dos tiques herdados, para a esquerda e para a direita e para a esquerda e por aí afora, sem esquecer a respiração.
Desejemos, entretanto, que quando o rapazola amadurecer e chegar à doideira dos namoricos à hora, não se prenda por alguma que tenha tiques semelhantes. Como aconteceu com os pais, ele acanhado e ela enervada com a demora, sujeita-se a nunca ser capaz de dar um beijo a sério à namorada e futura esposa, o que pode gerar desconfiança no respeitante à exacta razão de ser daqueles tiques todos.

sábado, 1 de julho de 2006

PAISAGEM ONDE A POLÍCIA TAMBÉM VIRÁ A TER UM LUGAR AO SOL

Imagine-se uma ponte entre lado algum e nenhures. Por essa ponte, das cinco da tarde às onze e meia da noite, não passa ninguém. E nas restantes horas do dia, também não. Não há sequer uma ribeira que justifique a existência da ponte naquele lugar. E a estrada, paralela ao hipotético curso de água, a montante ou a jusante, se a houvesse, não faria grande falta, tendo em mente a inexistência de pés andantes no espaço visível em volta.
Uma árvore dá sempre muito jeito uma árvore, pelo menos, nestas histórias, onde só a imaginação dos pássaros não basta para que lhes escutemos o chilreio―, de geração espontânea num dos extremos da ponte, oferece sombra sem custo a quem sombras procure num local onde a luz, por acaso, não é lá muito abundante. Como já se disse, no entanto, não há sinais nas redondezas de pés inquietos por causa do calor ou por outra causa qualquer. E é pena, porque a árvore, de tão frondosa, parece disposta a durar outros cem anos, se o desemprego sem tabaco de algum isqueiro não parar por ali.
Imagine-se agora uma excepção em forma de automóvel. Estacionou por baixo da ponte, ninguém sabe como. Nem ninguém sabe como é que de lá sairá. Sabe-se apenas que lá apareceu, de noite, talvez com os faróis desligados para passar despercebido. E ali está ele, imposto por alguém que nem se sonha quem seja, a estragar a paisagem com os seus cromados rebrilhantes, a sua cor de fogo bem polida, os seus vidros fumados de espicaçar olhos curiosos de mais.
Esperemos que a polícia não demore e já traga o respectivo reboque.