http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg

eliseu vicente

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

HAVENDO ISCO E QUERENÇA DE QUE A CANA DE PESCA SE NÃO PARTA POR ENQUANTO

“Só quando os cavalos-marinhos relincharem ou derem coices, o que equivale a dizer nunca”—, diz o velho, sem desviar os olhos da água e da bóia nela espetada, rutilante, a balançar conforme a ondulação do rio, ali convertido em lago mansarrão e farto, que não de peixe. Nada melhor que a pesca como terapêutica contra o processo degenerativo de alguns valores desde sempre tomados por primordiais. Mas o que são e quem os galvaniza e defende, tais valores, quando até a simples atitude de viver, hoje, torna cúmplice da hecatombe galopante quem se confine a isso mesmo, viver, respirar e fruir a existência como se a calcorreasse de olhos vendados e tudo julgasse harmonioso em volta dele, ou como se outras existências nem valessem o desconsolo de as pressupor no activo e ao ataque? Só a pesca tem em si a temperança que propicia aos intranquilos a fleuma e aos fleumáticos a outra face lunar, para que sobre ela pesquem e mintam sem que o desmérito do resultado lhes tinja o rosto de escarlate.
Quem o conhecia, àquele velho, sempre o soubera matreiro nas falas, perspicaz na colheita de dados a utilizar depois como argumentos de acutilância certeira, instruído e mais traquejado em lides elocutórias que os filósofos helénicos, famélicos atrás do pão mínimo à troca por agouros falaciosos entre oliveiras e ruínas. Era ele, em boa verdade, o paladino de quantos torneios de promoção da facúndia decorressem nos auditórios de maior credibilidade, ainda que situados não muito acima do pó da estrada sublinhado por bostas ou caganetas de cabra e rodados de carroça. Que alguém se propusesse persuadi-lo a seguir por qualquer via retórica que não a por ele estatuída, ou se atrevesse ao ultraje de dele se rir ao escutá-lo! Dar-lhe a volta — como é hábito dizer-se ao assumir a derrota —, isso é que não.
“Só quando houver peixes-voadores a entretecer o ninho nos beirais ou no arvoredo, o que significa jamais”—, reforça o pescador, de olho nos estremeções da bóia à tona de água como único motivo aparente, no momento, a suscitar-lhe a atenção, a ocupar-lhe as casernas onde o pensamento dormita e recupera do esforço, a proporcionar-lhe paz como contrapeçonha para as malfeitorias mundanas.
Se a fartura de peixe a pescar correspondesse às expectativas sempre investidas ao aparelhar a ferramenta e a lancheira, perfeita viria a ser a terapia contra a arremetida de quantos façam da casmurrice lema e estandarte. E a mentira nunca necessitaria da amostragem de provas passíveis de compra em qualquer supermercado. Não havendo peixe, porém, também nada obriga a que não se obtenham bons resultados com o tratamento. O simples gesto de lançar a linha à água e de a ver pendente, oscilante, prometedora ou a negacear a oferta, conseguirá ser tanto ou mais tonificante que analisar uma tela cuja significância se nos escape e por isso nos prenda, nos arrebate, nos interiorize, nos inculque o gáudio que experimentaríamos se ela tivesse sido produto de nossa lavra e cultivo e prazenteira colheita.
“Só quando a sardinha cair na rede já frita e pronta a comer, o que se sabe impossível de acontecer em qualquer tempo”—, remói outra vez o avô pescador, a sorrir para ninguém, atendendo a que está sozinho na margem do rio, num ponto onde a pesca, hoje, tarda em aliviar os olhos da sobrecarga de noite em que a manhã, por vezes, se prolonga até à manhã seguinte e às outras todas.
“Enquanto manhãs houver, haverá luz a nascer até que não”—, dizem os olhos velhos a quem os espreita lá de baixo, do trémulo espelho de água onde se contemplam, irresolutos, ou onde outros olhos também velhos aproveitam a conjunção e se lavam devagar, devagarinho, que o tempo urge em mostrar-se a limpo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

DA RECORRÊNCIA IMPUTÁVEL À ESTAÇÃO EM QUE O CALOR DA NOITE SUSCITA PRAGAS

A coisa começou por volta da meia-noite e um quarto. A temperatura era de abafo usado em pleno estio. De suor com nascente no pescoço e trajecto espinha abaixo até ao desfiladeiro entre nádegas. E o sono, como já era de regra consagrada a contragosto, resumia-se a bocejos lacrimejantes (ou lacrimijados, admitia ele, só para si) e ao descuido de espreguiçadelas infinitas, das de estalar ossos, sem que da ameaça dessem mais uns passos e o convencessem a cair na cama. Apesar de tudo, fraquejou ante a própria exortação e lá se deitou, sem se despir, em cima dos lençóis. Empertigou-se apenas na tarefa de descalçar os sapatos, com a ajuda das biqueiras e do dedão respectivo, e de os pôr lado a lado, já com as mãos, sobre o tapete. Pormenor insignificante, aquele dos sapatos bem perfilados, ou prova provada de insegurança nalguma decisão mais contundente a tomar?
Não correria meio minuto além do instante em que desistira do livro em mãos, apagara a luz do candeeiro e se enroscara em posição fetal sobre a ilharga direita, e o assalto principiou. Primeiro, ao longe, um zumbido de manifesta procedência, como se fosse o vagido resignado de algum arrastão a caminho da faina, quando toda a gente, menos o homem do leme, dorme e ressona. Depois, como se a traineira tivesse já dado a volta em fim de safra e de repente se aproximasse de terra e carregada, o zunido foi crescendo, crescendo, crescendo, em direcção a um cais situado junto ao lóbulo da orelha esquerda, porque a outra deveria estar algures lá por debaixo, na face oculta, bem intrometida na maresia morna dos lençóis, simulando nada ouvir do que a mana ouvia de mais. E por fim, já sem expectativa por força do clamor dado a escutar através de quantos sete mares se acometessem, de quantas mil intempéries se engendrassem, o término da viagem anunciada: a ferroada do costume, com exactidão de bisturi, fulminante. Se o que dizem ter sido o criador de quanto existe e não existe à superfície do planeta e no universo inteiro criou a melga, falhou.
Será muito difícil encontrar palavras capazes de transmitir com rigor a sequência de acontecimentos que após o ataque ganharam direito a figurar nesta crónica. Foi a mão atirada ao acaso da escuridão contra um alvo cravado na própria carne e logo em fuga, ou seja a injúria de alguém se esbofetear a si mesmo. Foi a pronta repetição do massacre com um zumbido ainda incógnito no ar e o desespero da sensação de impotência a persegui-lo. Foi o reacender da luz e a aflição de catar o tecto e as paredes e o soalho e quantos esconsos se arquitectem aptos à vilanagem de acobertar um criminoso. Foi o empunhar convicto de uma almofada como instrumento de execução da sentença decretada à revelia sem discussão. Foi o primeiro arremesso a errar o objectivo, mas a acertar em cheio num candelabro familiar já centenário. Foi o segundo e o terceiro e tantos mais, todos eles a falhar a pretensão ou a trocá-la pela inapelável destruição de estatuetas decorativas, jarras de flores, porcelanas chinesas ou imitações, fotografias emolduradas, telas caras a fingir, relógios de sala ou de parede, estantes de livros a não ler além da lombada com estardalhaço no chão. Foi a vizinhança toda a sobressaltar-se, arrancada da cama pelo banzé àquela hora e a telefonar à polícia. E foi a polícia a aparecer e a deitar a porta abaixo, a profanar-lhe a intimidade e a algemá-lo como ao mais perigoso dos facínoras, a arrastá-lo até ao carro celular e a levá-lo para a esquadra num chinfrim de sirenes e de pneus a repintar de negro a negridão do asfalto. Haverá paleta mais pragmática que a cor da noite temperada em plena noite? Repita-se, para maior realce, a conclusão posta a nu no parágrafo antes deste: se o que dizem ter sido o criador de quanto existe e não existe à superfície do planeta e no universo inteiro criou a melga, falhou. E falhou tão redondamente como a redondeza desta esfera com lume no interior e um nada achatada nos pólos.
E o pior de tudo é que, embora invocasse legítima defesa e acabasse, ainda assim, condenado por perturbação da ordem pública ao longo das sagradas horas de repouso e recuperação do equilíbrio sensorial, imprescindível na devoção ao trabalho para conforto da grei, aquele desgraçado mortal não conseguiu matar a melga. E não é que ela o foi visitar à prisão?

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

DIÁLOGO AO SOL EM TARDE HERMÉTICA POR MERCÊ DE SANGUE SERVIDO A FRIO

A cobra atravessou a estrada com dificuldade. Não porque a torreira do asfalto lhe desagradasse, mas porque a lisura do mesmo a obrigava a um esforço suplementar no desenho do ziguezague indispensável à progressão. Se um qualquer carro a qualquer momento se lembrasse de circular por ali, ter-lhe-ia cortado a cauda, quebrado a espinha, ou até esmigalhado a cabeça. Por sorte dela, amante e praticante da vida como todo o ser vivo sem culpa no acto de que nasceu, não abundam nas imediações grandes motivos a atrair viandantes, dependentes do artifício das válvulas sincronizadas ou apeados. Ou então abundarão outros atractivos de outra ordem, aos quais acorrem aqueles em cuja bagagem se carregam instrumentos mensuradores, livros, binóculos, mapas, bússolas, lupas, cordas, facas, escopros, martelos, peneiras, ou seja apenas a identificável miscelânea de artefactos relacionados com a explicação da morte em proveito da vida. Em qualquer ermo, ainda que nunca pisado pelas posteriores de quem quer que seja em tempo algum, sempre hão-de impor-se vestígios da insignificância humana ante o olvido da preguiça perguntadeira, para a consabida minoria de tenazes escavadores no sacrifício de fins-de-semana e férias, ou, para a esclarecedora maioria de desinteressados congénitos, não mais que cacos a justificar orçamentos de engorda de improfícuos escavadores em gozo de férias e aos fins-de-semana.
Ainda há quem só de as pressupor as abomine, as cobras, e as persiga e apedreje. E também há quem as esconjure e mantenha envoltas em histórias nefastas, crenças pueris de gente adulta, patranhas de fazer dó à estultícia sem os mínimos indícios de exigência correctora. E há quem a elas recorra como material de exorcismos, bruxedos e outras pantominices ressuscitadas na cegueira sempre em marcha contra a serena luminosidade do progresso. E há os estudiosos, aqueles a cuja vigilância, ajustada sobre a máquina toda poderosa das maquinações imobiliárias e congéneres ou complementares, se deve a preservação das espécies, desde sempre ameaçadas pela animalidade do homem, o arrendatário oficial do planeta. Alguém sussurrou só por enquanto, aí umas décadas mais, não muitas?
“Pelos quase dois metros de comprimento e pela coloração, eu talvez me incline para a malpolon monspessulanus”—, interpõe um dos dois emboscados sobre o trilho mal perceptível entre feno e cardos, que a cobra, alheia a perseguições, não se preocupou em disfarçar, fugindo por fugir. Como sempre se passou, aliás, desde os confins genéticos, a que a lenda, malevolente, deitou mão e tem vendido como lhe apraz, a preços de ocasião, ou seja consoante quem, como e quando.
Em volta, monótona e ressequida, a planura possível até às serranias acinzentadas pela distância, com esta ou aquela árvore, um ou outro arbusto a que a poeira surripiou o nome, alguns penedos amontoados à revelia de qualquer criador atento à função, tudo ao abandono de si mesmo, se nem o refrigério da sombra, quase nulo, se vê procurado e aproveitado perante a inclemência da canícula. É tempo dela —, diria a erudição das cãs de maior longevidade, se consultada.
“É de crer que haja por aí ratos para lhe dar sustento”―, conjectura o outro, de olhos ainda amarrados ao tronco esburacado por onde ela, a cobra-rateira, incólume e indiferente às latinices, quase majestática na pouca pressa em esconder-se, se fez sumir.
“Nestes dias de calor, deve ser compensatório ter o sangue frio como elas”—, graceja o primeiro, enquanto sem convicção enxuga o suor do pescoço a um lenço que urge torcer, de tão encharcado.
“Para ter já este tamanho, presumo que tenha alguns anos”—, arrisca o parceiro, o dos olhos ainda concentrados no buraco onde a bicha se pôs ao fresco, contrária ao labor científico ou profano que a tome por protagonista e lhe incomode a sesta.
“O que não pode é atravessar a estrada muitas vezes, se quiser durar mais uns tantos”—, torna o do arrojo latino, como se lhe cumprisse a missão de rematar por hoje a conversa.
Quando chegaram ao jipe, viram outra cobra enrolada sobre a tampa do motor, a usufruir da quentura de lá proveniente e a avisar de que, para quem tem sangue frio, nem todo o calor do mundo é bastante à congratulante necessidade de o saber disponível, sabendo-o também aproveitável por inteiro, sem contenção nem lamúrias.