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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 2 de junho de 2010

DOS ABUSOS PARLAPATÓRIOS AO PRIMOR DE ACHAR ECO E ORELHAS AFINS

Deixou dito, não escrito, que quando chegasse a hora dele gostaria de ser sepultado, em campa rasa, no cemitério da aldeia onde nascera, lá nas fraldas nordestinas de tão descoroçoadoras memórias, nesse país de insuficiências congénitas de onde se sentiu varrido, ou seja apenas a uns dois mil quilómetros do local na estranja onde fez manifesto de tal querença. E a hora dele chegou, meses depois, em simultâneo com a hora de obrigar os familiares a fazer contas, ainda que também lhes tivesse deixado uma sacola de pano, das antigas, a abarrotar de notas e moedas, a fim de cobrir as despesas do próprio enterro. Mas há que ter em devida conta a sequência das prioridades, e a compra de carro novo, de maior potência e correspondente estatuto, impunha-se-lhes como de premência ímpar, corroborada pela proximidade das férias e logo pela negação da vergonha de tornarem à terra na mesma lata do ano anterior, um exemplar de todo desactualizado e cheio de mazelas e ferrugem. No tocante ao funeral prometido, com obrigatoriedade de transladação do corpo segundo os preceitos oficiais, de sobremaneira tentariam desencantar algum processo de atenuar ou evitar mesmo a despesa e a ronceirice das burocracias, começando por não despertar a atenção com o alarido da choraminguice e não caindo nas garras de qualquer agência funerária — cambada de ladrões trajados de preto e de olhos em banho-maria a tempo inteiro. Mas como?
Uns, rosnam que foi o genro o autor da ideia. Outros, que só podia ter sido a própria filha. Fosse de quem fosse o alvitre, assinale-se que não foi senão uma espécie de devolução do seu a seu dono, se se atender à evidência de que fora o velho a pagar o carro novo, sendo portanto de inteira justiça ser também ele a estreá-lo. Vestiram-lhe o melhor fato, uma camisa de seda a sério, a mais rutilante gravata, calçaram-lhe os melhores sapatos, e até um belo chapéu de feltro com a aba a descair sobre os olhos que se conservavam abertos, se bem que fixos, como se deslumbrados com a eternidade atingida. E depois foi só instalá-lo no banco traseiro, equilibrá-lo com almofadas e uma manta a protegê-lo do frio, e partir para férias antecipadas no novo automóvel comprado naquele mesmo dia, mal amanhecera. Com sorte, tenacidade e muitos cafés a escorar as pálpebras, em dois dias completos fariam a viagem até às ditas fraldas nordestinas de apoucada memória. Eis a beleza de observar uma família ditosa — marido e esposa, nos bancos da frente, e o pai dela e sogro dele, viúvo, sentado atrás — no início do percurso que a levará, a família, em gozo de merecidas férias.
Ainda a vastidão teutónica os envolvia, começaram os problemas: um inopinado nevão fez confundir as estradas com as bermas, cerceando sem hipóteses quaisquer veleidades de progressão. Quantas foram as horas de espera e de rancor contra ninguém e toda a gente, enquanto as lagartas dos limpa-neve, algures na impenetrabilidade do nevoeiro a rematar a danação, lhes matraqueavam os tímpanos? Entretanto, lá de trás, sem um murmúrio, o passageiro de honra começou a fazer-se ouvir e cada vez mais alto. Pelo nariz. E naquelas feições de expressão hermética, que o chapéu detectivesco carregava de mistério, quase se tornava perceptível um sorriso de escárnio acusador.
Ultrapassada a primeira fronteira com meio dia perdido, seria de crer que agora, rodeados por gauleses e bretões e outros, tornariam a parar, e para descansar uns minutos, após a fronteira oposta, perante a ardência das searas ou a imponência de olivais e vinhedos em plena meseta ibérica. Mas não, nada disso: contornando pelas vias externas os imbatíveis engarrafamentos na cidade-luz, a capital das capitais de todo o mundo, logo foram cair mesmo no meio de uma manifestação de camionistas a avançar em marcha lenta. Azar dos azares, seja qual for a capital e respectivos engarrafamentos a contornar. E lá atrás, de olhos espetados, apesar da aba, na aflição dos acompanhantes, e com a nitidez da boca a entreabrir-se em reforço do sarcasmo sorridente e acusatório, o deão por selecção espontânea avolumava a voz para que os demais, sempre e só pelo nariz, dele escutassem as razões.
Quando, não se imagina quanto tempo depois, lograram prosseguir o andamento orientado a poente, nem as janelas do carro escancaradas lhes permitiam respirar, tal o discurso proferido no púlpito posterior pelo patriarca em jornada gloriosa de regresso a casa. E ainda faltava vencer a massa bruta do maciço pirenaico. Ou não. Foram eles por ali acima, em busca de um miradouro de convincente panorâmica e sem demasiada afluência por ora, e lá fizeram sentar num banco de pedra, embevecido pela sumptuosidade da paisagem, o venerando decano e pregador ambulante. E lá o deixaram a sós, aos urros, talvez a ensaiar a escala das cordas graves na ressonância das fragas.
Que através das ventas o ouvisse quem por ali, assim, tão bem vestido e calçado, enchapelado e sorridente, desse com ele.