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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

MORTE NA RUA ONDE SE GARANTE QUE SERÃO SETE A IGUALAR UMA

Com o queixo a repousar sobre as mãos, parece adormecido e em paz. Mas não está. Ou talvez esteja em paz, apenas, mas nunca a dormir. Está um gato morto no passeio em frente da porta de casa. O cão acerca-se dele e cheira-o, quase chega a lambê-lo, não lhe ruge. A morte, como se prova, embora mal tenha acabado de bater a porta ao sair, também é passível de reconhecimento pelo cheiro. A que cheirará?
Atropelado, decerto, ao atravessar a rua durante a noite, veio a soçobrar aqui, fingindo-se adormecido, por pudor, para não dar tanto nas vistas. É crença ancestral que os gatos têm sete vidas, e este teria uma, pelo menos. Perdeu-a ao passar de lá para cá, à aventura, chamado por alguma fêmea em fase mais doidivanas. Como se se caricaturasse a si própria, a vida tem destas coisas: morrem uns e nascem outros, numa sequência imperfeita, porque malevolente e injusta para alguns, porque benfazeja para tantos que nem lhe saberão merecer a sombra estendida a seus pés, no chão.
De súbito, no silêncio possível em qualquer tarde a meio, um uivo de mulher, lancinante, histérico, possesso. Foi a dona do bicho ao dar com ele da janela, no passeio em frente da porta de casa, como se estivesse a dormir, tranquilo, de focinho em repouso sobre as patas dianteiras. Morto, porém, e alheio aos gritos rasgados por cima dele.
Tão grande foi o susto apanhado com a gritaria da velha, que o cachorro, antes que alguém o acusasse de ter maltratado o bichano, alçou a perna e mijou-lhe em cima, seguindo depois a viagem quotidiana, com o dono, àquela hora.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

À HORA DA MISSA DAS NOVE HAVENDO QUEM LÁ VÁ E LÁ FIQUE ATÉ AO FIM

A cidade amanhece, prazenteira e amável. E é sábado, um dia em tudo igual a qualquer outro e tão diferente de todos. Ideal para se deambular a esmo em plena baixa. Ainda é cedo, se se atentar nos raios longilíneos do sol a fazer espelho nas pedras da calçada. O comércio, chamado tradicional, embora dado a bocejos multiplicáveis como ecos sobre a noitidão olheirenta de quem dormiu depressa de mais, prepara-se para mais um fôlego no empenho pela manutenção de pé, conforme a letra das leis da sobrevivência. Porque esta nunca deixa de ter em atenção que nos subúrbios da urbe se embosca o mostrengo das superfícies enormes, paquiderme cada vez mais gordo e nunca por demais satisfeito ao moer e remoer tudo o que se lhe ponha à mercê.
Rua abaixo rua acima, como se só a trama do acaso as fizesse encontrar e num beijo displicente pôr em dia a luminosidade do olhar sempre adiada, vagueiam sem tino paixões secretas, desasadas, dengosas, nunca esquecidas de quem serão, se for tempo ainda. E em tal arrojo se cruzam com eremitas entre a multidão, eternos apóstolos do bem a bem badalar por venal entretenimento; ou com donos de gente e gente com dono ou sem, cujo anonimato lhe confere imunidade às ferroadas dos literatos por aí em voo; ou com vadios de gravata e correlatos em estágio, propagandeando promessas vendidas por outros como sustento; ou com bêbedos de estratégia tão perceptível no mau hálito avinagrado dos olhos, sofrendo a ressaca para que logo se desforrem dela com juros; ou com vendedores de balcão andante e vendilhões de crenças à peça, justapondo e entremeando experiências e resultados na prática; ou, enfim, com este ou aquele fala-só, quando em lances de prospecção e demarcação do terreno, dos que salvam o mundo aos urros para que mundo algum se salve de lhes ouvir a palavra.
Esta pastelaria, de fabrico próprio e inspirado na tradição da doçaria regional, conventual e profana, de há muito granjeou nomeada e proventos bem para lá do denominado perímetro urbano. E até ela acorrem gentes dos mais variados mesteres ou propensões, sitiados ou transumantes, como se a fama da casa já fosse atestado de qualidade e concedesse aos clientes um certo grau de nobreza pela preferência. E com a iminente abertura das lojas, o formigueiro da rua toma de assalto tudo o que seja balcão e mesas, desde a esplanada ao despudor das celas de alívios fisiológicos, não sobrando um lugar, de pé ou sentado. Sedentários ou de arribação, são eles – esta clientela em tão fiel profusão – o certificado de um sucesso construído desde há décadas.
Sem fugir à norma, a ambiência é de fumo e de sussurros em conspiração pacífica, salvo esta ou aquela gargalhada, este ou aquele brado de pasmo, no meio de olhares à espreita a fingir que não. Nada de incomum num entrecho onde uma espécie de rito aproxima e afasta as pessoas, mantendo-as atentas ou sacudindo-lhes a deselegância do tombo em abstracções sem motivo. Quaisquer palavras de maior volume canoro se farão pasto incontornável de quantos ouvidos a todo o momento o remordam, estejam eles no éter ou afilados.
Numa mesa encostada ao fundo – é sempre ao fundo de algo que histórias como esta ganham peso –, estão duas mulheres de idade indefinida entre alguma coisa e coisa alguma, e cuja origem, inequívoca, se situará numa dessas aldeias em torno de qualquer grande cidade e por isso condenadas ao papel de dormitório e despensa. Pelo ouro transportado nas orelhas e nos dedos ou sobre as dornas do peito, percebe-se que terão alguma coisa de seu, muito acima do calcanhar rachado que as pariu. E já têm telemóvel, é evidente, pousado na mesa, ali bem onde toda a gente o veja e ouça.
Quando a melopeia de uma chamada se sobrepõe ao silêncio relativo em que têm estado, uma delas atende e a outra tenta interpretar e apreender o que a primeira nem diz nos dois ou três monossílabos ruminados.
“Já foi levar o gado?”– pergunta a segunda, enquanto a outra desliga e deposita o espião electrónico sobre a mesa, sempre ali, bem debaixo dos olhos de toda a gente.
“A esta hora ainda ele está de colhões na palha”– responde a primeira, de pronto, metendo boca abaixo um pastel de nata, inteirinho e num só golpe.
E toda a gente o mastigou, porque nunca antes, naquela casa, um único pastel conseguiu saber tão bem a tantas pessoas ao mesmo tempo, exceptuando-se tão-só os irrefutáveis esgares de mindinho esticado ao levar a chávena à boca.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

DA RAZÃO QUE PÕE A GIRAFA A TANTO GOSTAR DE CERTAS ACÁCIAS

Aproveitando o declive por fora da cerca de rede aperaltada por buxo e roseiras, passeia-se um humílimo regato de fugaz conformação, filho natural das derradeiras chuvadas. Saltita e cantarola em ínfimas cascatas sem viabilidade de espuma, como se tivesse pressa de tornar às origens, às nuvens que o determinaram há não muito tempo. E ao lado do regato sem esperanças de chegar a rio, um carreirito estreito e irregular, atapetado por umas pazadas de gravilha e cacos de tijolo de obras perto, a debruar o matagal de acácias onde às tantas se entranha e se some da vista exterior. Perde então o requisito de dar fé de quantos passos se aproximem do bosque, para se tornar, agora sim, num tapete de folhas e musgo, onde só os gravetos secos se pronunciarão, se pisados.
Lá nas alturas, ou em terra, na sebe, no esforço de riacho, os pássaros cortejam-se e perseguem-se entre negaças, piropos e piruetas, não deixando de estar atentos a quanto aconteça, dentro e fora da mata onde nasceram, cresceram, montaram casa e tencionarão procriar.
Não muito longe, sobre as encostas do monte sobranceiro ao complexo urbanístico em construção desenfreada, impõe-se a presença simpática de um pinhal sobrevivente ao lume dos algarismos empreiteiros, oferecendo-se como fundo e realce do que à boca de cena se lhe antepõe. E algumas dezenas de gruas, talvez mais elegantes que girafas a largar excrementos na savana, dão o toque de finados ao quase nada de paisagem campestre que por se veja, tal é a voragem dos tempos e de quem tem poder de lhes dar corda e balanço. Ou de travá-los, quantas vezes, porque assim convenha.
Afinal, a cerca de rede tem um buraco rente à relva do jardim interior que dá a volta a todo o edifício – escola, instituto ou departamento estatal, tanto faz como fará a esta história em curso intensivo. E por esse buracão se sai e se entra de gatas, a caminho da protecção do matagal de acácias ou em sentido contrário, deixando a sombra por inteiro à passarada.
Ninguém consegue imaginar por que razão o jovem apareceu dependurado, pelo pescoço, num candeeiro do jardim, e não optou por um pinheiro, uma acácia, uma das inúmeras gruas ali tão a jeito. Tinha os joelhos cheios de terra, como se antes tivesse gatinhado através do buraco na cerca em direcção ao fim. As mãos, entretanto, estavam tão limpas como se tivesse acabado de as lavar.
Só os passaritos poderiam contar com rigor o que de facto se passou por ali. Mas nada dizem, entretidos que andam entre piruetas acrobáticas e piropos sussurrados ao ouvido.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

COMO SE O ESTERTOR DA MADRUGADA NÃO FOSSE JÁ NOITE A SÉRIO

O sono entorpece-lhe a pretensão e põe em perigo quaisquer projectos esboçados. Não basta ambicionar algo, enquanto o sono, com crédito de teias ao léu, não se saciar. Há que repor nele o equilíbrio e de maneira pertinaz, sem simulacros, sem trucagens, para que tudo – olhos, mãos, boca, nariz, ouvidos, ideias, vontade – volte a marchar pelo seu próprio pé, liberto de muletas ou bengalas. E é-lhe indispensável dormir duas ou três horas por noite, no mínimo, para que os neurónios ainda vivos e aproveitáveis recuperem a funcionalidade e lépidos se façam movimentar, a caminho sabe-se lá de onde, de quê ou de quem. E quem diz por noite, diz por dia, quando por aí há tanta gente a trocar a luz do sol pela que a noite só promete a quem dela faça a travessia a pé enxuto.
Fazer a barba, por exemplo: será assim tão importante? Bem melhor é deixá-la como está, feia que pareça, e poupar a pele e os curativos que os cortes da navalha, empunhada quase às cegas, requisitariam, mal o queixo voluntarioso se emproasse contra o espelho. E com que fim passar sequer um pente pelo cabelo, ainda que desgrenhado, hirsuto, atirado ao ar como se uma descarga eléctrica o tornasse incandescente? E para quê vestir qualquer peça de roupa, ou calçar sapatos, se nem está frio que assuste e do parto se saiu descalço e nu? E, já agora, porque não a temeridade de saltar para a rua assim mesmo, a apanhar a fresquidão matinal em pleno rosto, da cabeça aos pés, e através de tal arrojo disfarçar esta espécie de podridão mental que o sono, quando em excesso por escassez de cama anuente, alimenta e põe à vista?

domingo, 3 de dezembro de 2006

MORTE LACUSTRE À DERIVA SOBRE UM FUNDO AGRESTE E A CORES

Atente-se nos limos, à transparência, cobrindo e colorindo o fundo de verde, enquanto protegem dos rochedos quaisquer pés menos habituados a sofrê-los. E observe-se aquele barco, além. Aparenta a maior tranquilidade. Nem um arrepio de ar lhe belisca o reflexo no espelho que à tona de água o detém e mantém. Quem adivinharia que lá dentro dele está um corpo de mulher, muito jovem, muito nu, muito morto? Por ora, só mesmo as aves viajantes o espreitarão do alto, viciosas, antes de zarparem em direcção a mais encalorados paradeiros, que o tempo é disso, até ao ano que vem, se vier. Para a timoneira daquele bote imobilizado, se tão inerte e alheia à vida como à morte em torno dela, já não virá.
A âncora, de quatro dentes, está cravada na sombra do barco que o sol desenha no lodo do fundo. E a corda, estando curta, está tensa, como se alguém, talvez o barqueiro, nessa medida a tivesse dimensionado de propósito, tendo como norma que lagoas deste género não sofrem a inconstância das marés e o desconforto, por vezes, do sal a mais.
Com sorte, ninguém, por enquanto, conseguirá aperceber-se de tão misteriosa ocorrência. E ninguém se cuidará muito em descobrir e avançar uma explicação credível e a contento dos próprios brios postos à prova.
E as aves viajantes, em princípio, não cometerão o despudor da gabarolice do que puderam ver lá de cima, já em direcção a mais encaloradas paragens.