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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

EM TEMPO DE INVERNO NÃO CONVIRÁ NADA MOLHAR OS PÉS NA LEMBRANÇA

Com olhos de perguntar que horas serão se levantou e num pulo saiu de casa. Antes do pulo, contudo, ainda tratou de tomar banho e de se vestir e calçar. Nem ele iria muito longe, se tal não fizesse. Descalço e em pelota na rua, em tempo chuvoso e gélido? Nem pensar. E porque não aproveitar o balanço e tomar o pequeno-almoço? Sair-se de casa em jejum e aos pulos é arriscado. Pode dar em quebradura de tensão e inerente desfalecimento em plena calçada, com consequências nem por isso muito saudáveis, não senhor. Embora o calcário se tome por pedra mole, sempre será mais rijo que o ar em falta ao cair, e parte o que nele tombe lá do alto. E, já agora, nunca descurar a prevenção do guarda-chuva, e até boné ou chapéu e cachecol, além do sacramental sobretudo, que tudo encobre e disfarça, ou da santa gabardina, capaz de enfrentar quaisquer dilúvios, por castigo divino ou naturais. E foi abrir a portinhola do gato para o jardim, para que o bichano pudesse tratar de si sem problemas durante a manhã. E renovou a água e pôs comida ao canário, espécie de despertador suplementar em manhãs deste género, em que a invernia na rua convide ao prolongamento do estado de sonolência entre lençóis, aquela lassidão que nem o torpor estabelecido pela morte igualará.
Com olhos de perguntar que horas serão se levantou num pulo e saiu de casa, vagaroso, meditativo, roído pela sensação de que se estaria a esquecer de alguma coisa de vulto, de alguém a quem se tenha ligado por qualquer compromisso, de algum evento importante a acontecer nesta data…
—As alianças, claro!...
Nunca mais se lembrara de comprar as alianças, como lhe competia, e sem elas já não haverá casamento. Seja com quem for. Seja quando for. Onde quer que seja.
Foi por um triz. A tremelicar, voltou a entrar em casa e jurou não pôr os pés na rua nos próximos dias. A humidade constipa.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

RETRATO INSTANTÂNEO EM MAQUINETA DE FEIRA A PROPOR COMO PASSAPORTE

A boina, informe e descorada, a descambar para a esquerda, à laia de cogumelo apanhado além da hora, mal pousada sobre uma cabeleira de maestro no desemprego, sujas de branco as melenas esfarripadas, atadas na nuca por um pedaço de cordel; os óculos, lunetas de agiota a aguçar as unhas, encavalitados meio palmo abaixo dos olhos, ou na ponta de uma penca rubicunda, judia genuína; a incontornável beata amarelenta, mais tempo apagada que acesa, pegada ao lábio inferior, como se já ali se propusesse à nascença; a expressão da boca, trocista inata também, com provável ascendência onde o nariz teve berço; e a barba, já de vários dias sem gume, a lembrar cristais de açúcar, ou de sal, entremeados pelo negrume de grânulos de carvão em perda para a alvura dominante. E com o já denunciado apoio branco de cinza das farripas, abaixo da calva no cocuruto que a boina oculta, será a muito breve espaço o domínio total.
O casacão, tirante a verde terroso, tão coçado como vasto, de ombros descaídos pela nitidez do conteúdo a menos e ainda pronto a tapar o que tapado se queira, algibeiras largas e profundas como credos sem crentes e crença a haver; as mãos, não tagarelas, penduradas ao lado do corpo, como que esquecidas de si no extremo dos braços, curtos e desde sempre despidos da ambição de chegar mais alto que o crânio, esse penedo nos píncaros que nem pela neve se sentirá considerado e ouvido com atenção, não obstante a obstinação de antes quebrar que dobrar; as calças, de bombazina já sem cor identificável, quer no gelo invernal quer no oposto, carregando nos bolsos, com o desassossego das mãos, o vácuo e o arrepio de se saberem mais que rotos; e os pés, agora sempre calçados por umas botas de couro à maneira de ontem ou antes, apesar de já malcheirosas aquando da estreia possibilitada por doação gentil, a consumar o quadro ao nível da base em epopeia perceptível à distância.
Conta a lenda envolvente, numa das duas versões postas a voar entre cada duas aparições do legendado, que o mesmo é rico e afidalgado e dono de herdades fabulosas e mansões. E até terá sinete de ouro com o brasão da família. Nunca ninguém lho viu.
Já a outra versão efabulante, porque avessa ao vil material da pompa beijoqueira de anéis, entre vénias e salamaleques, pretende-o objecto de traição, perpetrada por um roliço par de pernas condenado à fuga eterna, sendo a saga complementada pela notícia que faz dele eterno perseguidor, sem desfalecimento nem proventos noticiáveis.
Qual desses dois itinerários interpostos como realidade vivida é mais fantasista? Nenhum deles se aproxima sequer do que aquela boina, de veludo pardo, aos gomos irradiantes e feita por mão amiga em oficina de alfaiate, já se permitiu percorrer na vida e além dela. Só que andar por aí, como quem mexa e remexa em gavetas de outrem, equivaleria ao repto de decifrar um labirinto de olhos vendados. Desafio perdido, logo à partida, atendendo ao melindre de palpar e ouvir segredos cujo enredo já doa muito antes dos ouvidos.
Um derradeiro pormenor no respeitante à indumentária desta figura emblemática nas conversas a construir ao serão: às costas, de correia a tiracolo, vai e vem e dorme com ele a guitarra, que se recusa a tocar em público. Nunca ninguém lha ouviu. Pois como, se cordas não tem, nem nunca as teve ou terá?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

DEMANDA DE PARALELISMO ENTRE O RURAL E O URBANO OU VICE-VERSA

Levou o gado ao pasto e voltou tranquilo. A safra do ano promete ser das que apetecerá recordar. Deixou as reses espalhadas pela encosta, cada qual em sua zona, para que todas, ao longo da manhã, tivessem semelhante ensejo de tosar quanto pudessem. Algumas, não muitas, como é já visível, estão a atingir a idade de abate, pelo que outras as substituirão e farão esquecer. As mais jovens de agora, por exemplo, luzidias e nervosas, conquistaram o seu quinhão em detrimento das que se foram quando a hora do cepo badalou. É a lei da vida―, dizem os sorumbáticos aos taciturnos, se lhes falta argumentação apelativa e a isenção de um espelho que os dispa e meça.
Entretanto, lá ao fundo, na estrada de asfalto que sublinha o monte, há automóveis que afrouxam a marcha e param entre as árvores, de quando em quando, um aqui e outro além e outro mais adiante, sem que o motivo, cá de cima, se vislumbre.

Pôs o gado ao ataque e voltou tranquilo. O apuro do ano aparenta ser daqueles que apetece evocar. Deixou as gajas emboscadas na berma, cada qual em sua zona, para que todas, ao longo da manhã, tivessem semelhante ensejo de fornicar quanto possível. Algumas, não muitas, como é já visível, estão a atingir a idade de abate, pelo que outras as substituirão e farão esquecer. As mais jovens de agora, por exemplo, luzidias e nervosas, conquistaram o seu quinhão em detrimento das que se foram quando a hora do cepo badalou. É a lei da vida―, dizem os preconceitos à intolerância, se lhes falta argumentação apelativa e a isenção de um espelho que os dispa e meça.
Entretanto, lá no alto, na encosta do monte que domina a estrada, há uma manada de vacas a pastar e a mugir e a largar bostas, de quando em quando, uma aqui e outra além e outra mais à frente uns metros, sem que o movimento dos carros, cá em baixo, a afrouxar a marcha e a parar entre as árvores, as perturbe ou distraia do manjar.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

HISTÓRIA DE NATAL SEM VACA E SEM BURRO MAS ALGUNS LATIDOS VELHOS

Começam agora a cair os primeiros pingos. Pode ser que levem o frio, e ele lá se perca da viagem de regresso. O pior é se por cá se instalam os dois, frio e chuva. Nunca fizeram grande par, isso não. É mais uma tarde consumida a contemplar, através da janela, a insignificância da bicheza humana, quando colocada perante a iminência de temporais com algum calibre. Na serra, longínqua embora, estará a nevar. E por aí, qual manifesto de denúncia, tanto os arrepios de penugem íntima como as castanholas dos dentes vão impondo o ritmo.
Não é muita a lenha, junto à lareira. Portanto, para que o conforto da imaginação arda a preceito, sem proclamar a necessidade de aquecer os dedos e o que intentem com o bafo, justificar-se-á o esforço, antes que chova deveras, de correr ao barracão e trazer um bom carrego de cavacas, pinhas, caruma, gravetos, carqueja. Tudo o que num relance se conjugue em labaredas e brasido, e logo se explique em sonolência e langor a elevar-se ao infinito. E que quase de imediato, após a pena da recarga de lenha, leve a desvanecer a tarde e a impor as trevas em torno da casa, do quintal, da povoação. É a paz mítica da noite a cair de manso por cima de quanto respire e sobreviva, pedra que seja, eco anterior ao grito original, roupa interior pendurada num estendal de improviso entre duas árvores, lenço esquecido no muro por nádegas mais apressadas, regato previsível com a chuva.
A cadela, de orelhas espetadas, dá sinais de inquietude. Anda algo na rua, ou alguém se aproxima, ou será o vento? Uma casa situada num ermo assim, separada das outras por algumas centenas de metros, dá que pensar a quem ali apareça, vindo de fora, e desconheça os donos, qual a sua origem, qual o mester de sustentação, e porquê a distância relativa à aldeia de que ainda é parte. Seja lá quem for, seja o que for, gato, cachorro forasteiro ou gente de sombra na sombra, melhor será que passe de largo, sem parar, ou sai chumbo grosso. De nariz no ar e orelhas sempre em riste, a cadela cicia, geme, abana a cauda, arranha o tapete. Já está velho e coçado, esse tapete. Está cansada e velhota, a cadela. Mas lá se soergue, a custo, e devagar encaminha os passos até à porta da rua. Ali à beirinha, na face oposta―como ela sabe―, há-de estar alguém ou alguma coisa com vida, algo que vibre e lateje e se dê a ouvir, ainda que durma.
No primeiro dos quinze degraus, para quem desça, ou no último dos mesmos, para quem os tenha subido, está um cesto de verga. Dentro dele, o óbvio embrulho de mantas e fraldas e caca amarela e vagidos mínimos de alguém que acabou de acordar.
É que a cadela ladrou, quando lhe pareceu que ninguém a ouvia.

domingo, 13 de janeiro de 2008

NO LUSCO-FUSCO DO NÉON NÃO SERÁ MAIOR QUE AO SOL O PESO DA SOMBRA

Como rãs à tona de água, só com os olhos à vista, ei-las que palpam o pulso ao movimento na avenida. Ainda é cedo, é verdade. Mas não se lhes afigura grande coisa a noite de hoje. O mês a meio significará falta de ar na enormidade dos bolsos. E tem estado frio de mais para se sair à rua fora de horas. Não há então que dar corda a ilusões relativas à afluência de clientela em noites destas. A não ser algum polícia, com a farda na mala, ao abandonar o turno. Ou algum vigilante de fábrica, já aposentado, a caminho da rendição de quem o antecedeu na guarita e ora ressona de pé. Ou algum noitibó, de formato antigo, carregado de sarro e de tosse tabaqueira, indeciso acerca de qual das duas bermas tomar como referência no sentido a dar à marcha. Ou outro exemplar qualquer, entre os que por aí resmoneiam na amplidão da noite sem açaime nem trela, em busca de entulho onde enterrar as ideias e pôr termo aos desvarios que lhas fizeram parir. Seja qual for o espécime, ou espécimes, a rondar e a mergulhar no charco, hoje, que ninguém lhes gabe, a elas, a mercê de lhes servir de repasto ou de bueiro, não mais, para despejo da enxúndia em excesso.
O dia, de sobremodo nos preciosos minutos que pela manhã adiante jamais sobejem, faça sol ou chova, esteja vento ou calmaria, só serve para dormir e recuperar o equilíbrio, a temperança a ter em palavras e gestos, o tino nos passos à espera de vez. E o mais é retórica, é chão já pisado e deixado para trás, é conversa vã que em vão se derrama e nada constrói, é tempo esquecido de ter vida dentro, é treva acolhida como luz inversa a fingir que é sombra, é caliça de paredes salitrosas encravada nas costas ou a arder nos olhos.
Família, projectos, delírios juvenis, pensamentos positivos, fantasias de voar sem asas e atingir as nuvens? Já houve. Agora, à distância de mil e uma frustrações acumuladas como sapatas de lama a infernizar os pés, o que fazer senão isto mesmo, a uma hora destas, em lugares obscuros, e receber no acto e sem passar recibo nem fazer descontos em prol da reforma? Mas qual sindicato?
Como rãs amedrontadas, só com os olhos a boiar à superfície, ei-las a dar conta do que a rua lhes promete, hoje, entre negaças. Que nem se lhes afigura grande empresa, isso não. Está muito frio, não é? E com o mês a meio, é o costume: o vácuo no âmago das algibeiras fá-las tão vastas, que até as mãos por lá se perderão uma da outra, quando não das ataduras ao resto do corpo.
Quem sabe se, com a luz do sol, amanhã, o dia não nasce de vez.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

AGUADA GENÉTICA COMO CENÁRIO E MORAL DA HISTÓRIA COM SABONÁRIA À MEDIDA

De noite, quando há luar e o céu está límpido e as estrelas nítidas, o panorama, visto daqui, é de embevecer os próprios bichos. Nenhum outro, em lugar nenhum, se lhe compara. O vale é fértil, farto, fresco, abundante em nascentes e vegetação espontânea, além da manta de farrapos das leiras, à beira do rio. E a estrada, cá em cima, na berma do abismo, é generosa e permite a quem passe uma retrospectiva do paraíso, que na lenda bíblica se institui como ponto de partida, e não de chegada, do pecado criador do que por aí se vê.
Derreadas e seminuas, as árvores lembram velhas rameiras ainda no activo, se já descrentes de haver quem se ponha nelas. O apelo maior da terra em que se implantam, por mão de alguém, desde há sete ou mais décadas de paz incerta, nem se dirige já à raiz nela mergulhada, como é da norma, mas à curvatura do tronco ao peso dos anos, mas ao destrambelho da ramagem, quase no chão também.
Dizem que foi o vento, na meninice delas, que as não deixou crescer em direcção ao céu, aos astros, ao rasto dos pássaros nas nuvens, às nuvens sem pássaros nem rasto credível. E se foi o vento, foi o vento, ninguém espere contas prestadas pelo ar em marcha desde o ovo do mundo, posto nem se imagina onde e chocado não se sabe por quem ou por quê. Daí, a descrença de que alguém repare nelas, as árvores, putas velhas ainda em funções, seminuas, derreadas.
Há folhas, tantos milhares, caídas na estrada. Folhas já mortas. E no entanto verdes, umas, e outras castanhas e amarelas, podres. Hão-de transformar-se em húmus e raiz e seiva e caule e outra vez folhas, lá no alto, prontas a cair de novo. Assim se completará o ciclo vital que justifica haver folhas, aos milhares, caídas na estrada.
O despiste deu-se por volta das seis da manhã. Morreram quantos lá iam: quarenta e oito, não esquecendo o motorista.
Na missa por alma esteve toda a gente, nanja incréus e aparentados, e toda a gente chorou com a homilia. Que lindo é ter quem de nós diga tão bonitas coisas, tão tocantes frases. Até apetece morrer, Deus nos acuda ao tento e no-lo sacuda.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

COM AVES NOCTÍVAGAS NÃO SE OUÇAM HISTÓRIAS ONDE MANDE A ESCURIDÃO

Um passarito na janela? Não, não pode ser. A tão altas horas da noite, no escuro, não é costume haver pássaros a debicar a própria imagem nas vidraças. Aliás, nem lá há reflexo algum, espreitando de fora para dentro, já que a pouca luz permitida segue em sentido contrário. E embora até lá haja migalhas de pão, no peitoril, a hora da refeição já passou.
O chilreio é parecido, todavia. Chega a lembrar o dos filhotes, no ninho, mal os pais voltam e tentam repartir, sem esquecer nenhum daqueles bicos escancarados, a sempre escassa papa conseguida, minhoca, varejeira ou gafanhoto.
Além do mais, nota-se pela aragem fria que imprime arrepios na pele do pescoço, a janela deve estar entreaberta desde que a frescura matinal tanto aconselhou. E assim terá estado todo o dia, a embater de quando em quando na ombreira e a dizer de quão mais prudente seria que a fechassem. A ladroagem, à luz do exemplo vindo dos píncaros, também tem mostrado os dentes e as garras a quem, por norma, duvide.
Outros barulhos em paralelo, entretanto, prestam uma ajuda preciosa na desmontagem do mistério. Acontecendo ao nível do soalho, os ditos barulhos, só uma alma, em toda a casa, os poderia produzir: o gato. É mesmo o bichano que brinca com uma bola de borracha, furada, e que, ao pular-lhe em cima e ao mordiscá-la, a faz chiar, gemer, chilrear.
A um cego, não de nascença, ainda lhe valerá a parca fortuna da memória. À cegueira congénita, só o imaginário.