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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

QUADRO CÍNICO EM QUE O LONGEVO É NOTÍCIA E BATE FUNDO

Tão longa era a estrada e a pressa de andar era tanta, que até a sombra de um sol mal parido e a dar-lhe por trás se deixava pisar. Para onde e em busca de quê iria ela a tais horas? E até onde sobreviveria àquela marcha de soldado em fuga através do pânico inimigo? Alguém já dela saberia, lá mais adiante, e a aguardaria na berma de enfim descansar um pouco? Ou só novas encruzilhadas sem nome e sem olhos a fariam persistir neste ritmo alucinado e condenado ao soçobro, mal caísse no desvão abismal de mais uma frustração, logo após o primeiro tropeço na talvez última pedra?
E o peso da mala atulhada a esmo? E a carga ainda maior da incerteza relativa aos recônditos propósitos invocados como propulsores da fuga? E o aguilhão da ira acumulada ao longo de tantos anos hesitantes? E o freio ronceiro ainda a puxar à nostalgia da lembrança de quanto de bom teve ensejo e se fez usufruir? E o pavor da inexistência de alternativas quaisquer, varrido que foi o gozo do que era novo e apetecia?
E se pedisse boleia? E se alguém a visse e parasse e a levasse depressa para longe daqui, fosse qual fosse o destino final, e se possível sem lhe fazer muitas perguntas?
“O que é que pode levar uma senhora da sua idade a vir para a borda da estrada e a pôr-se à boleia?”
Vieram a encontrá-lo, já putrefacto, um mês depois, lançado para o lixo de uma ribanceira. Do carro nunca mais se soube. Nem dela.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

MAL EMPRENHADA IDEIA DE HISTÓRIA A DESENTERRAR ENTRE PÁGINAS

Ela estava grávida, mas ainda só por dentro. E ele, que não se sabe se já saberia disso, tinha o ar tranquilo de quem se sente saciado e de pazes feitas consigo, sem exigir mais da vida que o trivial consumo de cada dia em seu tempo justo a rasgar do calendário. E como se dessa maneira, enfim, eles se tivessem deixado adormecer, estavam nus e abraçados.
Não de todo fora do mundo, ei-la, a casa; ou aquilo que de tal jeito, nas cercanias sem outras, assim se poderá chamar. Uma barraca desconexa, de toscas ripas tão cinzentas como tudo o que já nem tenha idade confirmável, com cobertura de latões repregados após cada vendaval, quanto bastante fixada sobre a mais alta das dunas. Logo, nenhuma das comodidades hoje ditas indispensáveis nos meios civilizados: luz eléctrica, água corrente, saneamento. Ou seja a imensidão dos dias reduzida à da luz solar, tal e qual como se passava no tempo das trevas originais; a água potável, ou possível, encarreirada através de um obstinado mas nunca aconselhável processo de garrafões de plástico amaldiçoados à unha; e as filosóficas descargas do alvorecer da tripa sumidas sem apelo areais adentro ou, com o aval da maré-cheia, na lisura das vagas em fuga contínua e contínuo retorno ao útero materno.
De borco e encostado ao casebre, um barco cuja memória de navegar lá se dissolveu na lonjura de um tempo nem sequer vivido. E enquanto um farrapo informe de rede arremedava a porta durante a intriga do dia contra o mosquedo, de noite era apenas e só um taipal meio desconjuntado que impedia o acesso a visitantes não desejados. E pelo único janelo, lateral, poderia ver-se quem se deslocasse praia adiante, não fossem as vidraças escaqueiradas e depois substituídas por tábuas a repregar também após cada assalto.
Viveu gente aqui. Aqui se fez gente. Gente aqui morreu. E por aqui se encontrou entretanto gente enterrada, ninguém sabe como nem quando, porquê ou por quem.
Como se pode verificar, o chão da casa é de areia semelhante àquela que por aí se vê e pisa, formando dunas ou em declive aligeirado até ao mar. E cama, se cama houvesse, também de areia seria. Quanto à casa em si, no exemplo em causa, não é senão esta estrutura de madeira antiquíssima, pobre e podre, que delimitou, separou e cobriu um pedaço de praia para que nele vivesse gente, sem ser ao relento, e nele morresse.
Daí, não estando o solo remexido, não se impondo o mínimo distúrbio de pegadas no interior, recentes ou antigas, não se distinguindo quaisquer pormenores de violência física sobre nenhum deles, não sobressaindo a causa de morte no exame sobre a autópsia de cada qual, à luz de que dados científicos indesmentíveis se explicaria a precisão da fenomenologia de dois corpos enterrados na areia, dentro de casa, a quase dois metros de profundidade, nus e abraçados, como se num tão íntimo momento, talvez de cansaço pelo esforço levado até à saciedade, eles se tivessem deixado adormecer?

domingo, 22 de outubro de 2006

ALPINISMO MENTAL EM RECORRÊNCIA AQUÉM DO LIMIAR DA FRAQUEZA

O velho apercebeu-se de que lá em casa não tinha muito com que compusesse o jantar. E por reflexo instintivo, quem sabe, pareceu-lhe sentir uma fome de vários dias a eito sem sequer abrir a boca. Levantou-se então, com algum rangido de ossos a vir ao de cima, do cadeirão de balouço, junto à lareira onde nenhum fogo se fazia ouvir, espreguiçou-se a toda a extensão dos braços e desceu ao quintal.
Encaminhou-se para o estábulo, deitou uns molhos de palha fresca nas manjedouras, e espalhou ainda algumas braçadas de mato na cama dos animais. Ao sair, como se o percorresse um específico pensamento, fez questão de abrir e deixar bem abertas todas as cancelas.
Acercou-se a seguir, sem mostrar grande pressa, da zona dos coelhos e das capoeiras, acrescentou uns punhados de milho e alguma erva, esvaziou e reencheu os bebedouros com água limpa, e procurou ainda, sem êxito, por ovos de postura fora de horas. E tal como no estábulo, experimentou as taramelas e deixou-as ao pendurão, assim escancarando as portinholas de todos aqueles inquilinos, galinhas e coelhos.
“Para que voem, saltem, corram, vão à vida, quando bem lhes apetecer”–, pensou alto em voz baixa.
Ainda se abeirou do poço, atirou-lhe uma pedra, e desandou dali, sem rumo determinado, como se um repentino assomo de sonambulismo lhe empurrasse os passos ao deus-dará da escuridão, qual nuvem inversa, em volta dele.
Atravessou de ponta a ponta a povoação, sem vivalma àquela hora, e começou a subir a montanha, em direcção ao mirante que lá no ponto mais alto, mesmo de dia, mal se vislumbra cá de baixo, da planura tão rastejante como quem nela se detém e mantém uma vida inteira. Seguirá ele tão abstraído em suas cogitações, circulares ou rômbicas, que passe pelo miradouro e nem dele se aperceba?
O mirante é uma espécie de rochedo robusto, achatado e sem a previdência de gradeamento delimitador, a lembrar o susto dos terraços de altos prédios em construção acelerada, com o argumento de uma panorâmica inimaginável, em frente, e um abismo de centenas de metros na vertical. E a complementar o simbolismo da tela, um outro penedo, também grande mas não tanto como o de demonstrar vertigens temporãs, fálico e erecto, que nem dedo apontado à surdez celestial. Com ele se assinala o cume de maior altitude por ali.
Houve em tempos quem se lembrasse de ir registando nesta pedra, com a gravação de cruzes feita a escopro e marreta, o número exacto de quantos por ali terão passado como se um repentino ataque de sonambulismo lhes levasse os passos ao deus-dará da escuridão, qual nuvem inversa, à sua volta.
Quem lá for agora, ao miradouro, verá que o menir tem mais uma cruz que as contáveis quando esta história começou.

sábado, 21 de outubro de 2006

DE OLHOS NOS OLHOS NENHUM OLHAR MENTE NEM SABERÁ ESTAR CALADO

Manhã ainda enevoada e remelosa numa rua da cidade sob a azáfama do costume, onde o comércio tradicional já foi chão produtor de uvas e vinho para quem beber nunca soube. Em demasia se terá beberricado, sem se atentar na conveniência da construção de suportes firmes e que de pé mantivessem a arquitectura funcional perspectivada. E nesta rua, como nas demais, onde o consumo e os consumidores se amparam em recíproco, um banco será uma ave de rapina a pairar sobre a cabeça de quem passe, quem vá, quem fique. Não são muitos os clientes, ao balcão do banco. Ainda não há filas de espera a roer unhas e a mastigar créditos de pagar ao longe.
Ao fundo, todo encostado ao vidro da única caixa em funções, como se com grandes pecados se dirigisse ao padre na gaiola do confessionário, um senhor de barbas e voz empastada, de propósito, fala lá para dentro.
“Eu não quero exceder-me, compreenda. Mas se me fizesse a fineza de introduzir neste saco todo o dinheiro que aí tem em caixa, poupar-me-ia ao sempre confrangedor aborrecimento de lhe pregar um tiro no meio dos olhos, está a ver? E espero que perceba o motivo pelo qual não terá de mim o respectivo recibo, pois só o meu guarda-livros saberia como ultrapassar esse escasso quiproquó contabilístico. Tenha um resto de dia retumbante, e queira ter a gentileza de manifestar ao senhor gerente o meu profundo pesar pelo falecimento de sua sogra, ontem à noite, ao que julgo saber. Deixe-se estar, não precisa de me acompanhar à saída”–, disse.
Muito além do espanto colectivo a partir do impacto sempre provocado por qualquer assalto, ninguém já sabia, em todo o banco, que a sogra do gerente teria morrido. E nessa altura os demais funcionários deram pela falta dele, do chefe maior naquela dependência, um dos primeiros a chegar e sempre o último a sair, para exemplo.
Quando as sirenes policiais irromperam a atordoar todos os ouvidos cravados em torno do estabelecimento bancário, já o gatuno lá ia, a pé, sem correr, escondido no âmago da massa ambulante pelas ruas de qualquer cidade. Levando o saco às costas, do género mochila escolar, e o sorriso aberto e atento a quem, sorrindo, lhe correspondesse, não mais se descobriu onde pararia, nas cercanias ou dali distante. Não seria senão um títere semelhante a tantos, de barbas grisalhas e espessas sobrancelhas, por certo postiças, a ensombrar-lhe os olhos e a escondê-los à vista.
Breves dias depois, afinal o tempo relativo ao nojo oficial por morte de algum ente familiar mais próximo, o gerente voltou ao activo, com todo o pessoal a dirigir-se-lhe no intuito de lhe apresentar, como se impunha, sentidas condolências. E só aí é que o caixa, protagonista, embora passivo, no assalto, pôde olhar de frente aqueles olhos, com uma nitidez de fotografia ao vender produtos. E sem a assombração de quaisquer mais grossas sobrancelhas e sem o griso das barbas como reforço, seria capaz de jurar que eram os mesmos.
Num prazo de poucos dias, foi despedido. O gerente, porém, numa atitude de exemplar magnanimidade, interferiu junto das altas esferas e conseguiu transformar esse despedimento em reforma compulsiva. O caixa era apenas – ninguém devia esquecê-lo – um dos mais antigos servidores do banco.
Uma questão de justiça, portanto. Nada de mais.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

CRÓNICA DE VIAGEM COM O REGRESSO ANTES DA IDA

Uma vez que se lhe desvaneceu o intuito de a reconquistar, o melhor a fazer é empenhar-se noutro objectivo de não menor envergadura. Esquecer assim, de repente, algo a que muito se nos amarrava o pensamento e modelava a conduta, nunca foi trabalho de somenos. E daí, o mais célere e aprazível sistema a exigir-nos um esforço equivalente, sem peias, sempre há-de ser aquele em que ousemos soterrar o passado por carradas e carradas de presente, dando rédea solta, como é de uso dizer, aos desmandos da sofreguidão.
O primeiro avanço a ensaiar, o segundo, talvez até o terceiro, trarão à tona toda a inibição resultante de qualquer projecto gorado. De maneira gradual, no entanto, todo o rubor se virá a desvanecer e confundirá nas restantes cores determinadas pelo prisma, para dar corpo e voz a um deslumbramento em que o simples toque de novidade seja argumento de imediata afirmação. E tudo o mais são cantigas–como diz o outro–, no que respeitará ao respeito que nos possa merecer a memória dessa já longínqua conquista, hoje em absoluto abandonada aos grilos, na mente, e até sempre, em concreto, devolvida a si mesma para sua própria requalificação entre parâmetros de muito particular escala métrica.
E quantas vezes não acontece, tempos depois da desistência, verificar-se uma radical inversão dos desempenhos em cena, passando então o perseguido a perseguidor, o desesperado a indiferente, o ouvinte a declamador, o desistente a alvo de tiro ao arco ou à pedrada?
Era nestes meandros que se embrenhava, quando, já de mala feita e guardada na bagageira do carro, fechou com estrondo propositado o portão da garagem, pronto para zarpar, de vez, daquelas águas de tão dúbia profundidade.
“Logo temos visitas, não te esqueças do pão”–, grita-lhe da varanda uma voz de camisa de noite, cuja leveza e cuja quase transparência dão as mãos com similar perigosidade, se bem que de rosto deslavado pela verdade matinal, mas não menos apetecível por isso, e de cabelo eriçado entre ganchos e rolos e envolto pela rede de pescar ao cerco, à vista da costa.
O relógio, por maroteira, segreda-lhe que ainda é cedo. E ele fecha o carro e reentra em casa, com uma repentina vontade de assobiar uma melodia de maviosa entoação, num qualquer tempo, num qualquer lugar.
Quanto à mala, já guardada na bagageira, mais tarde se verá se vai viajar ou regressar ao armário.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

DE BOCA EM BOCA O SILÊNCIO SEM VOZ NEM MUDEZ À VISTA

Tinha jurado que o mataria, e matou. Comprou a pistola com essa única finalidade, foi procurá-lo onde muito bem sabia, e só com dois tiros, um na pança e outro no meio da testa, fê-lo desmoronar-se desde o nível onde se lhe via uma apalhaçada tentativa de sorriso, até ao esgar final do nariz esborrachado contra o cimento do chão.
Nem um sopro de incómodo o perturbaria por ter de passar o restante dos seus anos numa cela. Nem seria já, com certeza, muito tempo. Ao chegar a polícia, com o habitual espalhafato municiado pela sobrecarga de filmes policiais na televisão, de pronto entregou a arma ao primeiro agente a acorrer ao local e estendeu os pulsos ao certeiro enlace das algemas, sorrindo em vez de responder a quanto lhe perguntaram. Nem mesmo o descuido de um sussurro lograriam arrancar-lhe.
Remetido ao calabouço da esquadra, a fim de ser ouvido pelo juiz, na manhã seguinte, em audiência preliminar, continuou a não ceder uma palavra a ninguém. Nem às promessas, nem aos avisos, nem às ameaças. Nada teria o efeito de abre-latas capaz de lhe sacar um murmúrio.
Confirmada a prisão a título preventivo enquanto decorresse a investigação e o processo conseguisse substrato e asas para voar, lá foi resistindo aos ataques de tudo e de todos, a toda e qualquer hora, desde os companheiros de cárcere à brutidão dos guardas, do advogado designado ao capelão, dos amigos mais próximos a tantos outros assim afirmados e por ele não conhecidos de parte alguma. Desde toda a gente à gente toda que a tudo apelava para o libertar de tamanha obcecação por um silêncio tão prejudicial e comprometedor, passível de lhe agravar a sentença final em alguns anos. Ou de lhe impedir o usufruto de algumas benfeitorias, licenças precárias e outras, que um comportamento mais assisado, porque modelar ante os demais, sempre antevê.
Nem mesmo as lacrimejantes visitas da mulher e dos filhos o convenceriam a regressar ao batalhão dos apologistas da voz como meio de comunicação por excelência, desde o princípio dos princípios, limitando-se a abraçá-los com paixão, sem se desfazer do sorriso, e a piscar o olho ao mais novo.
E foram meses, muitos meses, a ser alvo da atenção de todo o universo ululante, tanto dentro como fora da prisão, como se um gigantesco projector lhe seguisse os passos e o expusesse, a nu, ao olhar encaprichado de quantos, que o mesmo é dizer de todos, se pelariam por vê-lo capitular e desatar aos berros, a correr e a saltar, a dar com a cabeça nas grades.
Viu-se observado por psiquiatras, psicólogos e mais técnicos especializados nos dons da simulação, sem que vez nenhuma o pesquisador sorrisse, no fim, por ter ultrapassado e tornado inútil o sorriso dele.
No dia do julgamento, enfim chegado, sem grande espanto se confirmou que uma multidão em alvoroço se aglomerava nos claustros do templo justiceiro, esperando entrar. Porém, não entrou ninguém, nem um curioso passou, por ordem de quem mais ordena a quem apenas obedece, exceptuando quem por lá defendesse um papel interventor, desde o martelo do juiz à sonolência do escrivão e à presença sem eco do delegado, aos ardis contorcionistas dos advogados, ao perjúrio por contrato dos deponentes, à vermelhidão dos polícias, ao arguido.
Este, nesse entretexto, continuava tão sorridente e tão calado como já lhe seria exigível, afinal, se se fizesse um inquérito de rua, de porta em porta. E nos claustros e nos corredores e em plena via pública, entre falácias e apupos contra togas e becas, a turba bramia, a turba crescia, ameaçando calar os palrantes e dar a palavra aos que a não tivessem.
Só lá estava um que a não tinha, mas por opção sua, desde há largos meses. E não abriu a boca.

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

MELODRAMA EM UM ACTO PARA QUE O ACTO ÚNICO SUBA À CENA

O actor pigarreou, ainda na terra de ninguém dos bastidores, ao verificar que a voz se lhe mostrava insegura. Estas picadas na garganta, tendo-se tornado mais e mais assíduas desde há semanas, desgovernavam-lhe até aos soluços a contabilidade anímica e em destrambelho total lhe ensarilhavam os gestos, a expressão dos olhos, a dicção. Porque a simples hipótese de uma consulta médica pô-lo-ia de cócoras à mercê do espelho, no camarim, como se o diagnóstico lhe doesse menos em tal despropósito, que enquanto de pé ou sentado. O pai, também actor, morrera de quê? E a mãe, cujo brilho de estrela ímpar, naquele mesmo palco e em tantos outros, nunca se dissipara por completo e ainda hoje, com várias décadas de permeio, o ofuscaria por comparação da mais serôdia plateia, que barca a levara rio abaixo?
“Faltam cinco minutos”–, grita-lhe o contra-regra, do lado de fora da porta, sempre em marcha acelerada atrás do tempo a não desperdiçar por ninguém, nem um segundo, a fim de que o horário programado se fixe na mente de cada qual e a rigor se faça cumprir: actores, encenador, cenógrafo, carpinteiros, luminotécnico, sonoplasta, figurinista, cabeleireiro.
“Em cinco minutos se nasce e se morre”–, admite o actor, em voz média, de mãos no pescoço que massaja, tentando ler-lhe qualquer anúncio de ameaça afixado lá por dentro, talvez um gânglio, qual passageiro clandestino a dar-se ao luxo de uma fatal passeata pelo convés.
Protagonista na peça da própria vida, perto e longe da ribalta, ser-lhe-ia muito menos custoso protagonizar e triunfar sobre as matreirices do tablado. Qual Sófocles, qual Corneille, qual Ibsen, qual Brecht? Mas qual medo em relação à gaguez ou à oclusão da memória? Então não contam tantos anos a pintar e repintar rugas falsas, sem disfarce algum, porém, das que a realidade, à unha, vem gravando?
Logo depois deste pano, ainda em baixo, um mundo ávido de o esfarrapar ou aplaudir com adoração. Para cá dele, quando escancarado como se se despissem os actores até ao nojo das vísceras, a ficção explicada por palavras alheias, o artifício de sensações e sentimentos de comer na hora, o fingimento real da irrealidade a fingir, e a maquilhagem, como carapaça ante o pânico, sendo complemento da máscara da própria pele.
Não se descure, entretanto, o fulgor das luzes, que o artista é filho de gente também, e quem sabe se, de repente, não lhe dá para se acomodar à penumbra como simulacro de mortalha, óbvia que seja de mais.
Aos seus lugares, atenção. Todos preparados. Quem não é do palco, fora do palco. Eis as pancadas da ordem, que Molière e continuadores fizeram impor, seis ao todo: três mais rápidas, três mais lentas. Vai subir o pano…
O pano não sobe.
“Cumpre-nos informar o excelentíssimo público presente de que fomos obrigados a cancelar o espectáculo desta noite por morte súbita, há breves minutos, do actor que protagonizaria a peça prevista para hoje. Devolver-se-á o custo de ingresso a quem apresentar à saída os respectivos bilhetes”.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

DO NÓ EM QUE O AMOR SE BRANQUEIA E VENDE A METRO OU A PESO

Num país longínquo do tempo que hoje se conta, nasceu, um dia, uma criança. Tão-só um menino com a única sina de ser em tudo igual a qualquer outro menino nascido em qualquer tempo ou lugar. De olhos pretos e pele amorenada, tal e qual a mãe e o pai e toda a gente vizinha, em nada se diferenciava, é verdade, muito embora sempre houvesse os desconfiados a roer dentes com dentes. Bichanavam acerca de já ser velho e gasto em demasia o pai do cachopo, um carpinteiro, para que tivesse sido ele a emprenhar a mãe do dito. E que o filho dele não seria bem filho dele, mas produto de algum vagabundo a perambular por aqueles sítios e que lá em casa, ou no curral do gado, alguma vez pernoitasse e não apenas, sopesando o que à vista se expunha e tornara objecto de análise.
Também houve quem propusesse um milagre como solução de tão melindroso enigma. E toda a gente, das cercanias e de longes terras, das montanhas e das planícies, da borda-mar e do deserto, deu em acorrer até àquele paupérrimo casinhoto, onde habitava e laborava o oficial de carpintaria. Os dias iam difíceis e era em estado de indescritível necessidade que com ele viviam a mulher, bem mais nova e bem aquém de suscitar bocejos de cansaço e rejeição, e aquele filho tardio. Era de tal feição a nudez do seu habitáculo, que se sentiram compelidos a receber toda aquela gente no estábulo, entretanto repartido por uma vaca e um burro, os únicos animais que a família, de tão pobre, então podia manter.
E vieram pastores, operários, grandes e pequenos lavradores, servos sem quase sola dos pés, mulheres da vida e das outras profissões todas, artesãos, soldadesca e marinheiros, gatunos e assassinos. Veio gente muito rica e veio gente tão miserável, que nem ousou entrar por vergonha. E até lá vieram sábios e reis, a cavalo ou a camelo, pretos, brancos e amarelos. Rezam as crónicas sociais que a vida familiar se recompôs, já que os murmúrios da rua traziam o velho de monco e a entreolhar o miúdo e a esposa com ar perverso. Não raras vezes foram dar com ele, taciturno, de serrote na mão. Ou de martelo erguido muito acima da cabeça, como se ideasse arremessá-lo contra o primeiro chiste que ouvisse.
Ultrapassada a novidade da romaria, também a afluência de esmoleres se achou óbulo a óbulo reduzida ao elementar em odisseias que tais, devolvendo alguma paz ao carpinteiro e à sua parceira, bem como ao respectivo rebento. Reconfortada a despensa e seus comensais, a miséria foi de todo removida, acrescentando-se um piso ao casebre e restituindo o curral à criação, agora já com maior número de exemplares: cabritos, borregos, galinhas, pombas, coelhos, cães, ratazanas e gatos, sardaniscas e mosquedo, não se esquecendo o burro e a vaca, pachorrentos protagonistas na primeira parte do filme.
Não tivessem eles sido forçados a fugir para o Egipto, alguns velozes dias mais tarde, sempre por causa da desconfiança de invejosos residentes por ali, e teriam resolvido de vez os seus problemas económicos, tendo em atenção que o filão daquele puto, filho da mãe e de mais ninguém, lhes prometia gordos e seguros proventos no futuro.

Nota final:– Qualquer semelhança entre esta história e uma outra que por aí corre haverá dois séculos, onde se conta do nascimento de alguém que acabaria crucificado no meio de dois ladrões, será mera coincidência.

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

ESTUDO ANTROPOLÓGICO BASEADO EM PREMISSAS DE GAVETA ENTREABERTA

Morreu porque quis morrer. E quando morrer quis, morreu, nem mais. Nunca ele chamaria suicídio, se ainda lhe pudesse chamar alguma coisa, àquele seu acto consciente, ponderado, cronometrado, ensaiado e consumado com a morte. Di-lo-ia um gesto de coerência em quem desde sempre assumiu um pavor visceral à velhice. Ou uma simples opção de vida, com princípio, meio e fim naquele exacto momento.
Nem um tremor na hora tomada por certa. Nem um mínimo pestanejo de dúvida ao dar o tiro de partida para a prova em que seria não apenas o maior mas o único candidato à vitória final. E, praticante de desportos como sempre se soube, tinha conhecimento com toda a certeza de que as pistolas de pôr os atletas em corrida, mesmo não disparando balas, se apontam ao céu e nunca ao palato do juiz que as utilize.
Portanto, só usou de tal maneira uma das outras porque quis e quando quis.

sábado, 7 de outubro de 2006

CRUZEIRO À ILHA DE LESBOS VOGANDO EM BARCA SERRANA

Consta, nos anais boca-orelha coligidos, há já várias gerações de indiferentes, do confessionário até à sacristia, que aquelas duas se comem. E é pena. Num dos dois casos colocados sob espreita, trata-se tão-só da mais bonita e graciosa papoila ali nascida algum dia: a neta do tanoeiro.
Homem de bem e de bens à vista, senhor de seu nariz sempre empinado acima do desdém concorrente, sapiente e ardoroso no apego à velha arte de fazer tonéis e dornas desde a alva ao lusco-fusco contrário, decerto morreria de mágoa se alguém, por malevolência ou inveja, lhe desse a beber o cálice de uma tão odienta notícia. Algum dia virá, todavia, em que tamanho escarro lhe cai aos pés de maneira inequívoca, e ele tudo fará para lhe determinar a origem. E aí, há-de ser o fim, como soe dizer-se, com algum herói desprevenido a apanhar em plenas ventas com a enxó do ofício.
E no outro caso, não tão deplorado como o primeiro, trata-se da filha do farmacêutico, uma tábua de engomar, pernilonga, celibatária e imune, até ao presente, ao aguilhão de eventuais remoques deambulantes. Já houve quem a assediasse, lá isso houve, com proposições ditas sérias de romance a consagrar como é sabido, perante o altar. Mas nenhum dos candidatos logrou resistir à prova real, prescrita pelo pai, onde se veriam obrigados a renunciar por escrito à fortuna de que, sabiam, a noiva se encontraria vestida naquela data e nas seguintes, na saúde e na doença, até que a morte os separasse.
Quase sempre juntas, onde estiver uma, estará a outra, ou de lá próxima. E onde se lançar aos ecos um alarido em formato de riso de fêmea sob artificiosa pertinência, logo outra risada lhe repisará a cauda com igual sobrepeso de artifício, ou seja o burburinho manifesto através de cacarejos de capoeira por duas frangas em muito boa ocasião de ir à faca, uma delas, e a dar quando muito para uma canja sem grande substrato nem gemas de ovo como prémio, a outra.
Haja arroz carolino a contar com quantos sejam, haja vinagre do bom ao dispor, dê-se lume ao caldeirão para se dar alma e consistência à fervura, e a breve trecho também por aí haver sangue bastante para que uma bem apurada cabidela comece a fumegar nos pratos e nos narizes mais atrevidotes.
Assim a enxó do tanoeiro esteja ali à mão.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

NEM SEMPRE UMA AURÉOLA SIGNIFICA FELICIDADE SEM FIM

O perfume é outro. Outros, o vestir e o andar, quase como se levitasse sobre o quase natural balancear das ancas. E outra é a franca luminosidade do sorriso, ao jeito de aura envolvente, com direito a deixar um rasto de olhares deslumbrados à sua passagem. E até os dentes rebrilhantes, brancos, límpidos, no contraste perfeito com uma boca rubra e nem sonhada antes, aparentam outra vida no impacto daí resultante. Lembrando pétalas de flor à ordem do vento por cima de cardos eriçados de inveja em vez de espinhos.
O dia de hoje, para ela, terá um particular significado. Só que ninguém consegue calcular qual possa ser. E ela a ninguém o confessa. No jornal, do bichanar da redacção ao matraquilhar em contínuo da tipografia, toda a gente tem conhecimento da data de aniversário de toda a gente. Mas neste caso posto em pose, outro será o festim. Alguma efeméride pessoal? Alguma compra cujo garrote de prestações deixasse enfim de apertar os gorgomilos do equilíbrio em cada fim de mês? A potencial chegada de alguém com visita já anunciada e desesperada há um ror de anos? Uma daquelas notícias que o corpo, por vias recônditas, nunca transmite aos sentidos sem que um tremor se lhe observe?
Trágico foi que tivesse morrido, estrangulada por um doido à solta, sem antes se descobrir a causa primeira da assombrosa mutação no dia de hoje. E é dos livros que uma pétala de flor logo esmorece à mercê dos espinhos do esquecimento, ainda que ganhe outras cores, ao falar-se dela.
Perfume é que não.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

DOS PASSARITOS NÃO REZA A HISTÓRIA A ESCREVER COM PENAS

Olha em volta. Não se vê ninguém. Esta hora é propícia, se se não der o caso de algum retardatário, sem sede, no regresso a casa. Sempre foram uns meses de impaciente mas meticulosa observação, noite acima noite abaixo, tudo aparentando estar em conformidade. E se alguém tombasse do céu, agora, e aqui se desse com ele, tão afastado do percurso habitual em quem tome a noite como sua amante? Do céu não cai ninguém, que se saiba, sem que até tivesse subido, por seu esforço, e se aguentasse a pairar, qual avejão cobiçoso dos passos de quem cá mais por baixo se perca.
Apesar de tudo, de todas as contas feitas, de todo o rigor nos preparativos, de toda a convicção auto-inoculada logo após o impulso da decisão, sente o chão abanar por debaixo dos pés, descalços, fincados num miserável naco de terra, de escolha à sorte, como se entretanto ali tivessem criado raízes. E até lhe tremem as mãos, os dentes, o nariz, os olhos, o próprio couro cabeludo. Estremecem-lhe as ideias acerca dos reais motivos que aqui o puseram numa hora destas, tão distante de casa e já tão esquecido do mundo a que pertencerá. E se regressasse ao estado de ânsia anterior, o de peregrino sem crença que o impulsione ou atraia, ou o de eremita enfronhado no meio da multidão, ou o de simples passageiro embarcando a caminho de sítio nenhum em nenhures?
Desistir é próprio dos fracos–, dizem os valentões instalados no poleiro à plebe rastejante. Andar às arrecuas nem sempre quer significar cobardia–, diz a prudência dos mais avisados em frente do espelho. E não aproveitar um ensejo destes não será senão estupidez–, diz a si mesmo o protagonista da cena em decurso, abrindo os braços como se fossem asas e voando até muito para lá do infinito.