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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

DE COMO NUM MINUTO E MEIO SE ALCANÇA E SE PERDE O CÉU

Após o fastio da lengalenga de bronze, o sino bateu as sete, como vem sendo costume por toda a gente increpado, adiantando-se não menos que minuto e meio à hora certa. São horas de saltar da cama e zarpar no sentido de nenhures, assim os ventos colaborem e façam sumir as nuvens cuja descarga estará para breve. Minuto e meio, vendo bem, é muito tempo. E quando do declínio outoniço, já com a invernia posta de atalaia sobre quaisquer temeridades, pode mesmo ser um lapso de valor incomensurável no final de um sonho em decurso, por exemplo, se lhe reprimir ou alterar o natural desenlace dos acontecimentos em cena; ou no perfeito remate, sem atabalhoamentos, de uma acção que apenas se consubstancie naqueles instantes, rente ao desembrulho da alvorada a propor um novo dia em consabido retém fisiológico, se aos dois (terão de ser sempre dois em campo, no mínimo, nesta específica hipótese de ocorrências) tanto aprouver e apetecer. Quantos milhares ou milhões de bípedes, em toda a cama terrestre, não se fabricarão ou descerão ao nível dos vermes durante este minuto e meio?
Doem-lhe as mãos, obrigadas à friúra da água com que mal borrifa os olhos. E também lhe dói a incerteza acerca daquilo de que não poderá dispor em tempo algum, por via da hesitação má conselheira ou outra irresolução similar. E dói-lhe acima de tudo que outras mãos, e não as suas — estas mesmas que agora se lhe enrijecem na água de chapiscar as olheiras —, tenham acesso ao que lhe estaria reservado, por direito adquirido sem contestação mencionável, e lhe profanem o templo em que sempre sonhara ver transformado aquele corpo, aquelas túmidas carnes, onde só ele e mais ninguém pudesse reconfortar-se, saciar-se, refastelar-se. Eis como a cisma que conduza um indivíduo à opção de viver a sós consigo acaba por se revelar inconveniente, porquanto lhe empeçonha o tino ao submetê-lo a quanto houver de mais pernicioso nos próprios recalcamentos, os de mais funda estratificação, trazendo à superfície toda a miséria que com eles se recalcou.
Sai de casa sem sair, ou seja atravessa a rua de pijama, roupão e mãos aferrolhadas nos bolsos, entra no botequim em frente e dele regressa, minuto e meio depois, trazendo o jornal dobrado sob a axila esquerda e uns olhos de extasiante doação a causas santas, peculiares em quem tiver acabado de se deliciar com a primeira bica do dia. Nem deu para atentar na evidência de que já estaria a chover, à vinda, e só o espelho do elevador lhe deu notícia desse facto. Não o jornal.
À porta do café, a espreitar a chuva, ficou a dona. Uma matrona ainda nova, aí uns cinquenta ou além um nico, de túmidas carnes e olhos de serpente onde a hipérbole compassiva se não justificará, a desesperar por atenção e trato em conformidade. Basta reparar no tique nervoso com que ao limpar as mãos torce e retorce o aventalito de pano preto, a pender para o cinzento, de tão retorcido. Havendo quem se devote a causas sagradas, haverá quem as corrobore e acrescente sem a menor hesitação. Salta à vista, porém, que o maior dos problemas a transpor também tem a ver com a hesitação, mas da outra parte em jogo, sobre qual o momento do primeiro passo a ensaiar. Deveras má conselheira por excesso na prevenção, no acanhamento, no temor a uma resposta negativa e à escandaleira no contra-ataque do aventalito acinzentado, a pender para o negro, de tão desfraldado como estandarte de guerra em tempo dela se impor, a hesitação é uma merda.
Amanhã, chova ou não chova, após o fastio da lengalenga de bronze e das sete marteladas com minuto e meio de avanço, o conjunto pijama e roupão há-de fazer a travessia da rua e entrar no botequim, tomar a delícia do primeiro café e comprar o periódico, e tudo isto em minuto e meio, que mais nunca pareceu necessário. E até pode muito bem ser que então, demorando uns minutos mais, a afoiteza enfim predomine e evite continuar a emporcalhar-se na dita de tanto hesitar.
A não ser que a matrona, matreira e cansada de esperar que tamanha hesitação chegue ao lógico desfecho, afinal desejado por ambos, avise a polícia e esta, ao bater das sete no campanário com minuto e meio a menos, para ali se desloque em patrulha rotineira e cumpra o que lhe compete: recuperar para a segurança atrás dos muros aquele fugitivo ao tratamento nalgum hospital psiquiátrico, quem sabe.
Na manhã seguinte, no jornal, lá virá escarrapachada a notícia. Só ele, o primeiro cliente matinal, é que por ali não se verá para, em minuto e meio, comprar a gazeta e usufruir o gozo único, a suprema deleitação da primeira bica do dia, tirada e servida com muito amor.

HISTORIETA TÃO SIMPLISTA COMO A NOÇÃO DE QUE A TRAIÇÃO É COISA FEIA

Primeiro, não enjeitando a ordem natural, foram namorados, devotos e praticantes de uma paixão esbraseada em mútuas arremetidas, sem fim a ver-se nem a mínima precaução em não serem vistos e julgados à revelia. Depois, casaram, e o febrão depressa esfriou. Mesmo assim, aguentaram o casamento além dos limites do enfado, até que o ódio o clarificou e fez desmembrar sem dor, possibilitando que cada pássaro voasse para o seu galho e se predispusesse à concernente empreitada de entretecimento do novo ninho, e, sem surpresa, já bem secundado, como em tais sucessos se pensa ser lídimo e compreensível. Hoje, sob custódia do distanciamento e não apenas físico, portam-se como dois velhos amigos, telefonam-se, encontram-se uma vez por outra, e uma vez por outra dormem juntos como se o fizessem somente para matar saudades daquilo que nem viveram, porque o não souberam viver, de olhos nos olhos e de mãos dadas. E até conseguem o miraculoso feito, aquando desses cada vez menos raros encontros, de nunca entrar em controvérsia, seja qual for a razão, pertença a quem pertencer: aquilo que um quiser, quer o outro; o que por um for desdenhado, há-de ter do outro o desdém correspondente. Quantos anos não desperdiçaram eles, entretanto, buscando uma fórmula comportamental que sempre tiveram ali tão em frente dos olhos e não viram?
Têm mantido incólumes, cada um a seu modo, as respectivas ligações oficiais. Foi ponto de honra ajustado desde o primeiro reencontro em que o desafio a si mesmos necessitou de comprovante na cama. Aliás, qualquer deles, como antes nem à ameaça chegaram, veio a conseguir descendência a partir do novo conjúgio, ela um filho e ele uma filha, o que lhes tem valido como lembrete contra os abusos da sorte, ou a paz agora alcançada correria sérios riscos de se desfazer com a insistência na combinação pelo telefone de escapadelas ao fisco conjugal, se cada vez menos raras, como já se denunciou; ou cada vez menos espaçadas e logo mais próximas entre si, com o ferrão da apetência a instilar em cada uma o veneno da naturalidade, que o mesmo é dizer da contínua aceleração, como todo o corpo lançado num precipício em queda livre às ordens da força da gravidade. Os maiores perigos, nestas lides, são mesmo o da habituação à não obrigatoriedade da prestação de contas a ninguém, o da pressuposição de impunidade, e, por consequência, a gradual frouxidão na vigilância a impor aos próprios passos.
Nada sendo em boa verdade um ao outro, bastante curioso viria a ser este caso se os filhos, a filha dele e o filho dela, porque já crescidotes e na idade semelhantes, viessem um dia a conhecer-se e a apaixonar-se como aos pais aconteceu, e a casar também e a perseguir deles todo o modelo vivencial de que nunca souberam fosse o que fosse, até que se tornassem velhos amigos, se telefonassem e reencontrassem uma vez por outra, na cama ou num qualquer matagal à beira-mar, imunes ao visco de olhos fardados ou à paisana e a remorsos.
Gostariam os pais de saber que os filhos, ignorantes de toda a história calcorreada desde a fogueira juvenil à amadurada mornidão, em tudo se diriam determinados em deles decalcar a trajectória e os vícios?

BALADA EM TOADA MORNA PARA CONSUMIR SEM PRESSA NEM MUITA SEDE

Rutilantes como promessas de amor eterno em noite de embriaguez por temor à negativa, aquelas sardinheiras naquela varanda parecem ter luminosidade própria, fósforo, radiação. Sem empenho de maior, a horas tão adiantadas, tão fora de horas, conseguem saltar à estrada dos olhos de quem passe em frente, no outro lado da rua. Mesmo que o suposto viandante apenas vagueie com a moinha dos pensamentos noutra galáxia, elas, as flores, tornar-se-ão asteróides e virão de lá de cima perturbar a órbita imprimida aos passos. Por muito decididos e sólidos que se evidenciem, logo baquearão perante a incandescência que a negridão nocturna, em vez de atenuar, galvaniza.
Se agora, a completar o quadro e a dar substância à história, surgisse sobre a vermelhidão da fileira de vasos, na graça da mão enluvada de uma princesa, um pequeno regador de faiança branca a matar a sede às flores daquele jardim em suspensão, dir-se-ia, porque tanto a luva como o gesto se revelariam com a macieza do veludo negro, tratar-se de um truque de magia. O regador branco, com leveza de pássaro em vias de acasalar e montar casa, pareceria ter asas e esvoaçar sobre as sardinheiras, regando-as a todas, uma por uma, como se ninguém lhe pegasse e ele a sós se erguesse contra a sede vegetal. Por fim, sairia de cena, sem suscitar aplausos ou pateada, e talvez deixasse entrever por momentos, que nem o luar a escapar-se à asfixia das nuvens, a alvura imaculada de um semblante de porcelana. Uma pincelada fugaz. Uma visão em que o imaginário substitui os olhos, com vantagem, e se vale da imponderabilidade como argumento. A ideia que fica contará mais que a realidade, já que a realidade teria sido tão-só um fogacho de luz a esbater-se na treva como um eco nas vertentes. Será que amanhã, à mesma hora, se repetirá o feitiço do regador esvoaçante e da imagem, sem nitidez de contornos mas capciosa, de um rosto de princesa sem príncipe que lhe dê em que pensar?
É bem mais feliz, contudo, o final da história. Naquela mansarda, com um gatarrão sem nome e dois periquitos muito bem engaiolados para sua protecção, apenas vive desde a condenação da reforma uma velha marafona, meio trôpega e desdentada, que ainda guarda e se serve de uma das luvas, só uma, do tempo em que era mesmo princesa e tinha aos pés, derramados, os cavaleiros todos de toda a cidade. O veludo já estará puído e conspurcado pelo uso, mas de noite não se vê.