http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg

eliseu vicente

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 23 de março de 2009

QUANDO NÃO DOÍA O LUGAR ONDE E A HORA DE BEBER UM COPO OU DOIS EM VIAGEM

Uma tarde de Primavera a antecipar-se em calor ao tempo justo. Um lugarejo sem nome nos mapas, limitado a meia dúzia de casas muito juntas por vontade da nascente exclusiva e autora remota da junção, na travessia da planura. Na mornidão do ar, a complementá-la com o seu toque pessoal de soturnidade, o voo próprio de algumas rapaces garatuja no azul esbranquiçado e por lá parece ter ninho. Talvez haja algo, na frigideira do plaino, como promessa de alimento sem maior dispêndio que o da queda em flecha sobre o alvo. A transparência do espaço ao dispor dos olhos é fulminante. Haverá tão-só que daí tirar dividendos com a devida cautela contra a moléstia da gula. Nenhuma torre de igreja, ou sequer de capela, entretanto, previne o céu, o que é sintomático em lugares sem baptismo, aquém das cartas de navegar através da imensidão tão mal varrida pela desmemoria das searas de lés a lés, gado manso e bravo, pastores, árvores centenárias, vinhedo, canzoada da guarda, ciganos contrabandistas, cavalgadas nocturnas e tiros que nunca fizeram eco nos jornais.
À beira da estrada e única rua, em casa térrea, de grossas paredes de adobe ou parente chegado caiadas de branco, a loja, com duas portas entreabertas e em função permanente, dia e noite: a da mercearia e a da taberna. A porta delas e a porta deles, como ainda há quem sonhe ver, mas não veja, prescrito na lei. Nada de misturas. E daí, a enorme estranheza em campo. O nunca até ali enxergado a cumprir-se como inapelável sinal da indefinição dos tempos em marcha no mundo. Cá dentro ou lá fora (tanto vale), cheira a podre, ou não seja a podridão o indício primeiro e último de que é chegada a hora de prestar contas ao fisco existencial globalizado.
O carro parou sem alarido, em frente, não se cuidando em achar um oásis de sombra e fresquidão, que nem haveria. Em torno, só se fosse alguma miragem não previsível pelos folhetos de propaganda postos a circular na cidade, longe dali anos-luz. Não nos esqueçamos de que este lugarejo não tem nome inscrito nos mapas e aparece de repente, assim, na travessia amodorrada da planície. E um carro a parar é um fenómeno cuja raridade tem laivos de facto histórico a assinalar nos anais. Convoquem-se pois o escrivão e o livro de actas, que estes dois forasteiros acabados de arribar, no carro, serão testemunhas.
Ele, encurvado como se chovesse, o lenço na mão a enxugar a testa e a fugir à vergasta do sol, quase correu a entrar pela porta delas, a das vitualhas de índole diversa, ainda comercializáveis a retalho, e quase gemeu ao pedir uma garrafa de água.
“Gelada, por favor”— sublinhou ele, depois do pedido em marcha, de dedo em riste sobre o lenço já encharcado, a pingar no chão de terra batida e a dar corpo, minúsculo, a instantâneas nuvens de pó.
“Gelada, só na porta ao lado”— ouviu então de alguém invisível entre a escuridão, tendo em atenção o contraste do interior lançado contra os olhos de quem vier do clarão da rua.
Ela, servindo-se da carteira como improviso de cobertura, optou pela porta deles e caiu de rompante na calidez pastosa dos olhos de quem lá estava, ao balcão ou à mesa, na taberna. “Pode ser tinto”— diz ela à estupefacção servente, também às ocultas da sombra sobrecarregada pelo confronto com a fulgurância exterior.
Entre as duas metades da loja, mercearia e taberna, vê-se uma porta, mas está fechada. Quem de um lado ao outro quiser passar, terá de o fazer pela rua, pelo suplício do sol. Por isso é que, quando ele chegou à fracção destinada ao comércio de bebidas, alcoólicas e outras, vulgo taberna, com o lenço na fronte a aspergir o piso terroso, já ela pegava no segundo dos três que bebeu. E ele só bebeu água.
Ninguém avançou quaisquer comentários. Quem jogava às cartas, às cartas jogou. Quem beberricava num canto, por lá beberricou quanto lhe aprouve e conseguiu aguentar. Quem esfumaçava e envenenava o ambiente, sem problemas nem remorsos continuou a envenenar toda a gente e a envenenar-se, ao esfumaçar mais e mais.
E não é que até foi ela, no fim da história, a levar o carro?