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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

QUE NEM DESAGUARELA DEPENDENTE DE ÁGUA SALOBRA

Talvez tão-somente o acaso de estranhas tonalidades obtidas sobre a menos audaciosa das paletas. Ou não mais que o azar de uma nódoa recorrente, ao impregnar, obstinada, o mesmo pano. Seja qual for a incidência do olhar de quem fareje e lhe persiga a história, sempre há-de subsistir, sobre esta mulher, a suspeição de que nela haverá culpas. Como se o nascer bela de formas e grácil de maneiras não fosse já culpa bastante de quem apenas ousou nascer. Ou como se amar e ser-se amada se tome por pecado a pagar com a morte de quem, nanja ela, a tamanha empresa se atreva.
Prendeu-se de amores, emprenhou e logo casou com o pai do cachopo a haver, e amantizou-se e fez outro, aperfilhado pelo marido oficial. Enviuvou e sem pruridos assumiu a mancebia ao ar livre, juntando-se com os dois órfãos a quem a um deles tiraria, se tanto assim lhe aprouvesse, a lutuosa condição por orfandade. E agora vê-se na iminência de de novo enviuvar e se ficar, ainda prendada e lépida no arrojo, na expectativa de que pelos ares lhe apareça e se lhe ofereça a silhueta de mais algum milhano ao ataque.
Haja então cebolas das bravas e haja quem as talhe e retalhe, que lágrimas não faltarão por aí. Também o pranto alimenta e recompõe, levando sal quanto baste.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

QUANDO O TEMPO MANDA E COMANDA O TEMPO A HAVER

A chuva, tocada a vento, põe de vez na prateleira quaisquer planos de fuga aos sufocos da sensaboria. É sempre arriscado, a meses de distância, fazer projectos sensíveis ao tempo que faça na altura. E nem um improviso de artimanhas consegue transformar-se em alternativa capaz de apagar os efeitos do vendaval que aí vai sem ir, de facto, para sítio algum.
Nem mesmo a opção de ficar em casa e desistir, por se saber oriunda da adversidade desta danação que aguça o ferrão do granizo, alcança a seu favor o aplauso mental de quem se lhe submeta, impotente, com um encolher de ombros longínquo de pacificar os intentos. Ficar-se por aqui, de nariz esmagado contra o vapor da vidraça durante uma tarde inteirinha, a ver e a injuriar chuva e vento, que graça tem? Muito melhor será aguentar com a borrasca no lombo, sem demasias, e avançar até onde se calcule ter algo de bom à espera de mãos e boca e nervos e arreganho à medida do exigível, pelo menos.
E se o marido resolve desistir da viagem por via do temporal e se apresenta cá em casa e não a vê?

domingo, 12 de novembro de 2006

ASSIM O FOGO SE PROPAGUE E APAGUE O VERDE DO MAPA

Como se esperasse alguém, com o dono lá dentro, sentado ao volante, todos os dias aquele carro aqui se encontra de motor desligado, estacionado de maneira idêntica, no mesmo lugar, na berma da rua.
A rua, recente na abertura ao trânsito, ainda sem casas. E em torno dela, o cenário costumeiro numa qualquer urbanização aquém promessas de compra e venda sob garrote banqueiro de caracteres microscópicos: vertentes que parecem cortadas à faca, descobrindo estratos milenares de seixos a entremear barro vermelhão petrificado há muitos milénios; quarteirões quadrangulares, ainda em bruto ou delimitados por vedações metálicas e coloridos cartazes promotores, onde parece real a virtualidade perspectivada ao envenenar com mel a tentação; algumas dezenas de gruas já em laboração lá muito por cima do formigueiro, mais negro e de leste que branco, e o castigo sonoro e pulsante dos compressores e seus acessórios, quais metralhadoras pacíficas; camiões-cisterna com betão líquido em contínuas idas e voltas, e outros camiões encarregados de remover, não interessa muito para onde, carradas e carradas de terra e calhaus informes; capciosos espaços relvados, por conta da conveniência de enverdecer os projectos e os tornar mais apetecíveis, cercando os gabinetes de onde se espreitam hipotéticos clientes a imobilizar e sugar na teia; e tudo o que, por sugestão comilona, se sabe miscível na mesma calda onde se cozinhará quem cometa a temeridade de se pretender vivo entre viventes, mortos ou não.
Outros promontórios, outras colinas, e outros vales ali perto, semeados de pinhal e mato, também em breve serão palco de urbanizações similares, assim que os pirómanos contratados entrarem em acção e puserem a nu tanto terreno a escalavrar através de novos projectos avassaladores, novas perspectivas de encandear olhos atentos, novos cartazes envenenados por açúcar bancário, e novas presas emboscadas desde gabinetes averdungados pela relva em volta.
E aquele carro ali está, todos os dias, estacionado de maneira idêntica e no mesmo lugar, na berma da rua ainda sem casas nem vícios, com o dono lá dentro, instalado ao volante, como se esperasse alguém.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

ENSAIO-PROJECTO DE MORTE EM VIDA PARA EFEITOS DE LOGÍSTICA (excerto)

Consta, por mester de metediços nessas tramas melindrosas da pesquisa em gavetões histórico-científicos – industriosos catadores por conta própria a espiolhar em pêlo alheio–, que um tal Hooke, físico inglês de meados do século dezassete, se entretinha com fios esticados, a fim de falar à distância e não se ver sujeito ao perigo de levantar a voz além das fronteiras da inconveniência delatora. E lá terá conseguido, pelo menos, porquanto sempre há-de haver quem retire proventos de tais brincadeiras, colorir ao rubro as alvíssimas orelhas das mais pudentes donzelas derretidas em seus varandins, quando, ao cair do crepúsculo, elas podiam ouvir as brejeirices matreiras dos namorados, cá do meio da rua, se já encaminhadas entre espasmos através do trémulo cordel com um copo de lata em cada extremo. Era como se eles lhes lambujassem os lóbulos enrubescidos e os mordiscassem com o vagar de quem sinta próximo o ensejo de assaltar a janela final.
Consta também que, não muitos lustros depois de Hooke ter provocado tão pudibundo frenesim língua-ouvido, teria sido Gauthey, um monge francês com ideias contra a clausura da fala, a querer valer-se de centenas e centenas de quilómetros de canos interligados, para que a voz voasse sem asas e mais célere que o vento. Acontece, no entanto, que as ventanias da altura não lhe estariam de feição, embora parecessem soprar a favor no princípio, finando-se enfim tão ambicioso projecto no meio de orçamentos sem ar, ou contra desconfianças com vento em demasia na intestina tubagem da condescendência patrocinadora – já em tal época muleta de quantos façam do sonho pão e água quanto baste à inprescindível manutenção do esqueleto em andamento compassado, sem pressas, vulgo artistas encavalitados nas andas possíveis para que maiores se acreditem ante quem neles acredite como lucro a qualquer prazo. Ou seja diante de quem os subsidie e lhes suporte essa toleirona bazófia de iluminados no breu.
E ainda foi necessário esperar mais dois séculos de ensaios e falhanços como esses, para que outro nome despontasse e se impusesse, aperfeiçoando isto, eliminando aquilo, corrigindo ou substituindo e logo amarfanhando e fazendo sumir tantas centenas de outros nomes que, sob igual estandarte, tanto se terão emproado com a mesma descoberta: Bell, Graham Bell, Alexander Graham Bell, investigador de nomeada invejável e enorme experiência nos complicativos domínios da elocução, por feliz descendência de outros, seu pai e seu avô, como ele professores de tal disciplina; e grande aficionado da música e do estudo minucioso dos sons, por congénita vocação ou por influência da mãe, também praticante.
Bell, escocês americanizado, como tantos contemporâneos e conterrâneos ou não, pela ida até tais paragens tão propícias ao engano sob desculpa da frágil saúde, e por todo o planeta sacramentado como inventor do que ainda hoje não se sabe se é benefício satânico, se malefício divino, ou se tão-só uma resultante evidente do conluio entre céus e labaredas (talvez porque em tréguas tão discutíveis como desejáveis desde há milénios de guerra).
Mas tratar-se-á de quê, afinal, nestes meandros demasiado extensos, nestes meio ensarilhados novelos temporais, nestes arremedos de tecelagem artesanal sem bilros nem unhas que génio algum faça morder, quem sabe se tão quiméricos como os seiscentos mil metros de canos que o infeliz do beneditino gaulês sugeriu mas ninguém aproveitou?
Pois bem, vamos lá então ao que pretende quem narra: como decerto se perceberá, fala-se aqui do telefone. Nem mais nem menos que do telefone, essa amaldiçoada caixa de surpresas tão amarguentas como notícias de traição legíveis na própria cama, esse esquisito brinquedo para crianças sem idade, por se saberem condenadas a sofrê-lo desde os cueiros borrados até à mortalha devolutora em caixote envernizado.
O que se diriam eles – o físico inglês dos cordéis esticados, o frade francês dos canos interligados, ou o escocês emigrante da caixa preta –, se hoje cá regressassem e alguém, tanto por malvadez como por curiosidade, lhes pusesse na mão o susto de um telemóvel?

terça-feira, 7 de novembro de 2006

GOTA A GOTA EM RELÓGIO DE ÁGUA JÁ UM TANTO ADIANTADO

Fecha os olhos, num gesto arrastado, como se fosse o sono a comandar-lhe o sistema nervoso. Não é o sono, todavia. Será sobretudo a própria vontade a negar-se os últimos resquícios de luz, afinal inútil, e assim calar o ardor que lhe arrastará os olhos à falência, que não vergonha, das lágrimas. Um homem não chora–, sussurra-lhe a infância relembrada entre caretas semelhantes às que a dita meninice nele fez soletrar e vincar por dentro. E porque é que um homem são não há-de chorar quando lhe apeteça, quando precise, quando urja despejar as caleiras dos beirais sensitivos? – pergunta-se ele a si mesmo, em voz de pano, fechando a desbocada torneira da memória e não reabrindo os olhos à perseguição do ardor luminoso de que renega a mordedura, não vá cair na esparrela de ainda se dar ouvidos e de seguir os próprios conselhos.
Não se responde, contudo. Questões haverá cujo afloramento à superfície das águas mentais (com a inevitável metáfora da lama emboscada lá no fundo) é bastante ao embaraço que as inflige, dispensando a resposta e quedando-se em suspensão, à deriva. Aliás, sabe-se que não é senão essa a razão de ser da sua proposição sustentada por preconceitos gastos de velhos, mas vivos ainda, ainda pesados, medonhos de estarrecer.
Dormir é preciso. Durmamos.