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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 28 de abril de 2007

CRIME E CASTIGO EM PRESSUPONÍVEL VERSÃO A PAR DAS MODAS

Talvez ele se tivesse voltado a tempo de ver o rosto de quem acabara de o matar. Mas não o revelaria a ninguém. Levaria consigo a última imagem de que dispusera em vida. E não há nenhum processo capaz de espiolhar a memória morta e com fidedignidade determinar o que ela tiver guardado, entre lixo e fantasias, aquém da treva.
Para baralhar ainda mais os espertos em tal assunto, aquela expressão de espanto, olhada como libelo acusatório da mão assassina, continua a ser o que mais comentários e sugestões dependurará nos estendais justiceiros. É que não era susto o que naqueles olhos se lia. Procuraria ele dar notícia – e todos confluem nesta proposta–, a quem já morto o desencantasse na barafunda dos caniços, de que o seu verdugo fora alguém conhecido por ali. Alguém muito próximo dele. Tão próximo e tão de pasmar, que nem a violência de encarar a morte sem remissão lhe dissipara os vincos no semblante, lhe encerrara a boca, lhe vedara os olhos. Será uma questão de perspicácia, vulgo faro policial, descobrir e interceptar quem lhe adiantou o relógio até ser muito aquém do tempo justo. E aconselhável será não se esmiuçar de mais o conceito de justeza, num caso destes, enquanto nada se apurar da ponderação entre tempo vivido e actos, maus e pérfidos, nele cometidos.
Parece que já há suspeitos. E toda a gente anda a espiar toda a gente, por toda a parte e a toda a hora. Ninguém confia em ninguém. Todos de todos duvidarão. Todos serão potenciais executores na clandestinidade, carrascos oficiosos a olhar-se e entreolhar-se com acutilância na demora. E todos também se tresjurarão inocentes, enquanto a prova em contrário não tombar aos pés de algum dos que em coro mudo mais gritam e arreganham as mandíbulas antes do cuspo no chão.
Qual aranhiço a preparar os apetrechos de pesca, a polícia lá vai entretecendo ou remendando e estendendo as teias onde se espera que caia, num espaço de lépidos dias já contados e descontados um a um e a média voz, aquele (ou aquela) cuja acção punitiva parece ter comprometido de igual modo todo o povo aqui residente. Como se qualquer um dos habitantes, diante da oportunidade, descobrisse também razão bastante para se enroscar no torpor do canavial, por detrás da mira e do gatilho, e pouco o perturbasse que a presa, uns milésimos antes de morrer, esbugalhasse até ao avesso os olhos e a boca de pasmo, que não de pânico esventrado perante a evidência do fim, ao reconhecer, tarde de mais, quem lhe entregava em mãos o passaporte para as nuvens debaixo da terra.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

PROVA DE ESFORÇO IMPOSSÍVEL PARA QUE A SORTE GRANDE ACONTEÇA

Acordou a sorrir. Remirou-se no espelho e gostou de quem lá se via a vê-lo. É sempre tão simpático e benfazejo que alguém nos sorria logo pela manhã. Hoje, apesar dos prognósticos de chuva na irrequietude sensível nas cortinas, nem a fastidiosa casmurrice de rapar a barba à navalha o apoquentaria. Claro que se a deixasse crescer até ao peito, como desde sempre se lhe oferecia fazer de cada vez que a fazia, pouparia trabalho e curativos nos golpes, fazendo por ignorar as pragas cuspidas e as respectivas mordidelas na língua. Mas envelheceria uns dez anos, se não mais. E acontece que a idade, nesta idade, já precisa de se remirar no espelho e de gostar, sem fingimento nem máscaras, de quem lá se veja a olhar para nós.
As superstições ainda são de comércio livre para pastoreio de quem disso gaste, o que nem é o caso. Todavia, e se hoje fosse deveras aquele dia? E se por trama do acaso se conjugassem, nas próximas horas, as condicionantes mínimas para que um confortável pecúlio o bafejasse, enfim, e nesse mesmo bafo se configurasse a já quase desesperada reviravolta?
Cumprimentou o vizinho, que com gentileza lhe franqueara o acesso ao elevador, e ao assomar à porta do prédio contrariou o hábito dos passos e optou pela direita. Já o vizinho apontou ao sentido inverso e aí vai ele, de pasta na mão, bamboleante, sumindo-se sem pressa na multidão, após um breve aceno de despedida até mais logo.
E o sorriso interior permanecia aceso e favorável à apetência de saudar toda a gente com quem se fosse cruzando, mesmo que desconhecida, e de retribuir todos os sorrisos e esgares e bocejos confrontados. A luz matinal, porque reflectida pelos olhos e porque neles guardada e posta ao serviço de quantos mais olhos não tivessem luz nem promessas, tudo justificaria e daria a entender, se necessário.
Começou por comprar o jornal no quiosque da praceta, com atenção aos percalços na travessia da avenida, desandou até ao parque e nele entendeu deambular à toa entre canteiros e arvoredo, apenas em busca do íntimo gozo de ouvir as areias retrilhadas pelos sapatos. Não muitos metros depois, mudou de estratégia, ao apetecer-lhe sombra. Sentou-se no primeiro banco encontrado, corrigiu a posição dos óculos, desdobrou o jornal com os vagares de quem se sente sem pressa, e teve uma ideia: comprar uma cautela, um vigésimo, e nesse gesto de quase nula importância a hipótese de fuga ao espectro de todas as noites, na deita, se sonhar dono do mundo, e todas as manhãs acordar e se descobrir de bolsos tão esburacados como as expectativas num morto.
Como se a ideia, repentina, lhe picasse as nádegas, correu até ao quiosque e só parou, já de regresso, a meio da avenida, de olhos escancarados e um pedacito de papel colorido, cai não cai, a tremelicar-lhe nas mãos, quase tão tremelicantes como o resto: ali, a uns milímetros de distância, ainda a esfumaçar pelas ventas e a soletrar ameaças de pneus queimados, vê-se e ouve-se um carro e uma buzina a gritar em uníssono com a apoplexia do condutor, um taxista. Atabalhoado, de nariz no asfalto ao pedir desculpa, agradeceu e mandou-se em corrida pelo parque adentro, à procura da sombra e do banco onde o jornal, com os óculos pousados em cima, lhe ficara.
Mais adiante, ainda que não recomposto do susto, retomou o sorriso como arma e armadura, aventurando-se outra vez na selva das ruas. Almoçou, sem fome, numa taberna de moscas e fritos com semanas de velhos, caminhou através das horas como se nem as viesse contando ou controlando pela própria pulsação, e começou a perceber que o sorriso, como fórmula secreta, já não funcionava. Ter-se-lhe-ia desvanecido a aura, não duvidava, quando ouviu e viu a morte a milímetros. Tão próximo dela se chegara a crer, que ainda chegara a dizer-se adeus e a desfiar, num milionésimo de segundo, o imenso rol de projectos postos em pauta e então votados ao arquivo dos torrões às pazadas entre epitáfios.
Enquanto se inquiria num reflexo de montra que lhe atraíra os olhos e os passos, escutou um alarido em tom crescente e logo depois um estrondo seco, sem eco, qual saco de cereais arremessado dos céus: aí meio metro atrás dele, na calçada, esparralhara-se uma trouxa de roupa sangrenta, com carne e ossos quebrados lá dentro, e a pulsar ainda, a pulsar ainda, a pulsar ainda. Sem querer ou a sério, alguém se precipitara do cume da vida (alguma mansarda com flores a secar para um gato agora órfão), e quase matara dois em vez de um, quando a mortalha de névoa já tombava sobre a tarde.
Antes que alguém se lembrasse de o acusar de qualquer coisa e de lhe pôr a canzoada atrás, arrancou em desatada correria até casa, para dar de caras, ao entrar no prédio, com o mesmo vizinho matinal. Ignorou deste a simpatia do cumprimento e o obséquio do elevador, galgou os degraus, dois a dois, até ao décimo-terceiro, deixou-se despenhar em cima da cama e ali se ficou, muito quieto, de mãos comprimidas contra os olhos e de ouvido pregado aos rumores da rua, sem sequer fechar a porta. Nunca se veio a saber de que morreu.
A taluda foi sorteada na manhã seguinte, mas a fracção dele não teria nada, já que o taxista ainda está na praça e nem de carro trocou.

terça-feira, 3 de abril de 2007

DA MENTIRA DE SE ESTAR VIVO ENTRE O NASCIMENTO E A MORTE

Olhou a janela aberta, sobre a esquerda, e através dela olhou a paisagem, hoje meio imprecisa por culpa da chuva. Nem o tempo se mostra inclinado a prestar-lhe a mínima ajuda, pois se sol houvesse, bem diferente seria a cor dos pensamentos e também diferente o conteúdo. Mesmo que ele nunca olhasse a janela aberta, sobre a esquerda, e através dela a imprecisão da paisagem por culpa da chuva. E nada brota do nada que o habita, qualquer que seja o grau de lucidez dos pensamentos, de maior ou menor colorido em função da incerteza de haver sol ou não, e com este teor ou outro sob igual dilema solar em maré de imprecisão.
Passaritos em ludíbrios namorisqueiros, uma ou duas folhas a cair em voo escasso até ao lamaçal das antecedentes, obras inacabadas por obra das ventanias bolsistas, sobreiros que o egoísmo ousou arrancar pela raíz, compressores a infernizar ouvidos o dia inteiro, um qualquer pormenor, perceptível ou tímido, a colher do acaso onde os olhos ajam como catapulta do restante. Mas onde estará ele, esse pormenor vadio, se há horas o persegue e nem uma pegada se lhe dá a ver?
Um copo de vinho, quando do bom, é um bom tónico. O pior é que, após o de arranque, virão um segundo e um terceiro, o que não só não facilita como complica e varre o que lhes falte varrer. Ainda assim, que se fique pelo menos com o prazer de apanhar uma piela à maneira antiga, para que a desvergonha de vomitar seja o pormenor perseguido, desde há horas, sem que uma pegada se lhe dê a ver.