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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 25 de maio de 2009

NEM SEMPRE A LUZ DO ASTRO PREDOMINA E RESISTE À TREVA DOS TEMPOS

Numa aldeia, algures a poente de lugar nenhum, nasceu um dia uma criança, igualzinha a qualquer cachopo parido numa aldeia algures a poente ou a nascente, a sul ou a norte, de lugar nenhum. Segundo os áugures, sempre consultados nestas coisas da nascença de cachopos em ermos situados fora dos mapas sabidos pela sapiência daqueles a quem sempre será lídimo deitar mão em casos de dúbia sinalética no que respeite às estremas confirmadas pelos séculos, foi-lhe prescrita, com garantias de indubitável afirmação assente no voo dos pássaros viajantes sobre a mornidão da hora encantatória do crepúsculo, uma longa e farta existência.
Na aldeia, como em todas e quaisquer aldeias onde o devir é matéria consumível a título prévio (não vá o demónio entreter-se a brincar às escondidas com a vida de quantos nele acreditem como príncipe das trevas no desemprego por via da concorrência dos céus, quase nunca modelares na intemperança do comércio das almas viajantes sobre a mornidão da hora encantatória do crepúsculo), havia uma igreja, um padre e um sacristão, coxo e rico como é costume verificar-se com os acólitos ajudantes ao santo sacrifício da missa e por isso colectores e guardadores de quantos óbolos se ouçam a chocalhar contra o fundo das múltiplas caixas de esmola desde o pórtico ao sacrário sem que o presbítero sequer desconfie e peça contas; havia um posto da guarda, comandado por um cabo de patilhas e bigode e apenas com direito a dois soldados em patrulha permanente pelas beiras da estrada e rua única de ir e vir do povoado sem dele se ter saído; havia um barbeiro e ao mesmo tempo boticário, endireita e quase médico, além de voz e orelha a captar quanto na aldeia se tornasse em notícia e corresse as mais orelhas e vozes colocadas de atalaia desde a alvorada à noitinha e noite adentro; havia durante não mais que uma hora de cada dia da semana um carteiro cinzento de boné e malote mais pesado que uma albarda das antigas e respectiva bicicleta a equilibrar-lhe as passadas consoante a inclinação emborcada; havia como em toda a parte se vê o imprescindível taberneiro e merceeiro com livro de fiados a perder de vista e avental de cor nenhuma admissível na paleta universal das cores possíveis sob a tutela generosa da luz solar; havia um latoeiro e ferreiro e ferrador de alimárias e cavalgaduras e quantas mais bestas de cascos convivessem nas redondezas; e havia pastores e lavradores e lenhadores e caçadores e pescadores tão embusteiros como o apego ao trabalho entre vagabundos natos; e havia os talvez compreensíveis magotes de reformados alapados nos jardins, de lápis atrás da orelha e sebo das cartas na mão e na matreirice dos olhos; e havia mulheres já gastas e donzelas por gastar e catraios e cães e gatos vadios e ratos tamanhudos com generosidade de praga. Haveria tudo o que é típico constituir material vivente em aldeias quase tão distantes do mundo como o mundo, esse sim, se sabe delas.
O que ocorria na aldeia escolhida era o que sempre ocorre nas terras votadas ao silêncio acondicionado à lonjura sem grandes volições de a minimizar: trabalhar de sol a sol (quem trabalhe), e assim angariar não somente o sustento, mas de sobremodo a força motriz requerida pelos calcantes; entretecer enredos e pô-los em cena no palco onde é useiro complementá-los com sessões de pancadaria, por exemplo, ou de chumbo grosso, porque não, quando a coisa se complica e atinge a raia da verdade posta ao léu, para entretém das massas residentes ou passantes, ainda que só lá passe quem se perca do caminho; comer e beber quanto haja, quando houver, ou fingir enfartamento quando os dentes encham a língua de calos pelo não uso na função própria, que é a de impor endereço ao pasto em dúvida; e enfim cumprir todos os rituais estabelecidos e autenticados pela tradição e pela lei do menor esforço pensante, a saber: casar de branco, elas, e eles de preto, sob o sinal da cruz tartamudeado pelo vigário descrente e repetido através do eco no riso das bocas; demolhar os filhos na pia baptismal sem os ouvir antes; matar o porco anual e convidar toda a gente a participar nas exéquias; pagar as promessas feitas a quem se sabe, tenha ou não obtido a graça cujo preço era a promessa a cumprir; e morrer no fim da vida, e não no início ou no meio, depois de assegurada a ascensão aos socalcos celestiais mais altaneiros.
A criança parida no parágrafo de arranque? Apesar dos auspícios lhe afiançarem um percurso vivencial copioso e dilatado, cresceu, casou, teve descendentes em casa e na rua, e nada mais fez que fizesse jus a figurar hoje com assentamento oficial nos anais. Nem a merecer, por isso, que se lhe conte a história.
Era uma bonita mulher, no entanto, ao que parece.