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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 29 de julho de 2009

TRATADO DA LEI DOS GRAVES NUMA VERSÃO ONDE O ACERTO É AGRAVANTE

A bola caiu não se sabe de onde, ressaltou no asfalto da rua e voltou a subir até ao nível do terceiro andar, no mínimo, tombou de novo e de novo ressaltou e se elevou, desta vez até ao segundo, e tornou a cair e a acertar em cheio na chávena de chá que a velha levava à boca. “Que pontaria”—, chalaceou uma voz, em sequência, porque se apercebera de todo o trajecto, excepto na origem, da bola. E estranho foi não ter dado conta de que a velha, talvez com uma síncope, se enrolara para trás e se ficara, amortalhada pelos cortinados a que ainda se agarrou só para não se despenhar tão depressa. Se tivesse caído para a frente e voado até ao passeio fronteiro, as consequências nem seriam muito diferentes, pois não, mas bem maior impacto social viria a despertar uma ocorrência que assim passou despercebida. Nem um jornal teve faro para fazer levantar aquela lebre. Nenhum canal televisivo até ali fez acorrer um qualquer aprendiz de jornalista a gaguejar e a roer as unhas com a aflição dos olhos. Ninguém teria seguido, em princípio, mais esta cena pungente na tragicomédia de quem, por opção ou por desventura, vivia a sós com a própria solidão.
Estava ela em casa e em paz, à janela, no primeiro andar, e teria sido até aí, por estimativa fácil, que a bola ressaltaria, vinda do asfalto, se ao mesmíssimo nível não tivesse chegado, uns dois ou três segundos antes, na consumação do terceiro tombo. Tais contas fê-las a polícia, chamada ao local alguns dias depois, quando o cheiro inundou a rua e o chalaceador de serviço se lembrou da bola na chávena de chá, em cheio. Foi ele, aliás, que informou os agentes acerca do trajecto que a bola de borracha maciça, achada junto ao corpo, tinha tomado, vinda de algures, lá de cima, não se sabe de onde. De algum avião ao passar entre as nuvens, ou largada por algum passaroco ladrão, não? Do céu poderão até precipitar-se raios e coriscos. Mas não bolas de borracha tão elástica como a paciência leitora.
“Parece-me fácil de descobrir”—, diz um dos investigadores, novo, de sangue na guelra, como soe dizer-se, semblante vivaz, a fremir, ainda enrolado pela utopia da ascensão a chefe através do reconhecimento do mérito com provas dadas no terreno, na acção, na espontaneidade dos alardes de coragem e abnegação…
“Basta fazer os cálculos ao contrário e seguir a trajectória da bola em sentido inverso”—, atalha o chefe, repondo a ordem e demonstrando ao sequaz que não é tão para qualquer laparoto galgar os degraus da escala e chegar ao comando, a chefe de brigada como ele, ou mesmo ao sonho de ser director regional, ou geral, ou ministro. Tantos lá há nas alturas que nem para o pelouro de mandarete prestariam.
Comparando a dimensão descendente dos ressaltos e invertendo-os, portanto, quase de imediato concluíram que a janela de onde caíra a bola, ou de onde alguém a arremessara, só poderia pertencer a quem habitasse no quarto andar daquele prédio de cinco. E no quinto, pelo que logo auscultaram, não residia ninguém haveria meses. E quem lá moraria então, no quarto piso?
O dono da única voz ouvida naquele exacto instante, ou seja o autor do comentário jocoso, gabarola, endereçado a si próprio, e acólito da polícia na tão célere descoberta do criminoso. Mas negou que tivesse feito de propósito. O azar foi acertar.

terça-feira, 14 de julho de 2009

TODO O LUGAR FICARÁ LONGE DE MAIS PARA QUEM ESPERE QUEM NÃO VEM

O homem, alto, magro, elegante, como sempre convém acontecer em todas as histórias passíveis de serem um dia guião de filme a realizar em estúdio sem telhas e a pagar do próprio bolso e de mão estendida às promessas presumíveis no saco de esmolas dos subsídios oficiais, imaginou-se de chapéu acinzentado e gabardina de cor próxima, um jornal debaixo do braço e um livro já lido numa das algibeiras. Olhou em toda a volta, como se fizesse o reconhecimento do lugar à coca de qualquer ameaça não enunciada no programa. Pigarreou com ênfase para a concha da mão disponível e aproveitou o gesto para consultar as horas no pulso e compará-las às interpostas no relógio da estação ferroviária, na outra berma da avenida, para então tomar assento na muralha ribeirinha, mas não sem antes varrer com o lenço o excesso de solicitude das pombas e das gaivotas anfitriãs, donas do rio quase mar e das varandas e beirais circunvizinhos.
Delas se ouvia, destas últimas, a falácia em decurso sobre as águas, à tardinha, a hora habitual de deitar contas à vida e de avançar planos para a aventura do dia seguinte. Imaginou-se também, o homem alto e magro como já se revelou ser conveniente, à espera de alguém que não prometera vir, e daí a expressão intranquila, impaciente, olhos e ouvidos e demais sentidos apontados para lá do horizonte, a linha de onde deveria despontar a boa notícia, capaz de quebrar a expectativa e devolver a tranquilidade a quem aguarda não se sabe quem.
Continuará na algibeira da gabardina o livro já lido, e amarrotado ao jeito do braço o jornal a ler. A atenção maior, todavia, não se agarra a nenhum desses subterfúgios de fingir devoção à leitura, aligeirada ou empenhada, jornal ou livro. Conserva-se lá, na bruma que a distância adensa para castigo dos olhos que a perscrutem. A própria tagarelice das gaivotas não consegue perturbar-lhe a fixação na irrealidade que a lonjura teatraliza. Alguém ou algo, talvez uma vela, talvez um navio de chaminés a fumegar, há-de aparecer e trazer-lhe quem ali o tem e mantém, muito bem sentado na muralha ribeirinha.
A noite nem precisa, no entanto, de ser imaginada para que caia, seja qual for o grau de veracidade que a inventiva consiga pôr em palco e representar como sua, vivendo-a como se a vivesse. Nem a noite tem contas a fazer ou planos a arquitectar para o dia de amanhã como as gaivotas. Cai sem disfarce, sem comiseração, sem nada se cuidar com quem tenha ou não tenha onde dormir. E após a travessia da planície estrelada, não havendo nuvens a toldar-lhe o afago, há muito quem a percorra sem se deslocar do sítio onde ela o tenha descoberto. Assim aconteceu àquele homem elegante, magro, alto, que agora se imagina de gabardina cinzenta e chapéu em tom semelhante, com um livro já lido na algibeira e um jornal a ler sustentado pelo braço: ali continua ele, sentado na muralha da margem do rio quase mar, de olhos fixos no horizonte que a penumbra, maldosa, finge longínquo.
Quando o aparato médico e de enfermagem do hospital psiquiátrico, entretanto informado por alguém, veio recuperar o doente de pijama e chinelos que naquele ponto, uma muralha de pedra deitada sobre o negrume do lamaçal na margem do rio, conseguira passar uma noite inteira, encontrou-o a chorar. Não estaria a sofrer os efeitos daquelas horas todas sem assistência, sem medicação, e suportadas ao relento, ao frio, à fome, à sede?
A razão de ser daquele pranto era só uma: o alguém que ele esperava vislumbrar no horizonte não chegara ainda.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

À UMA DA MANHÃ E À LUZ DO LUAR TAMBÉM SE MATA E SE MORRE

Puxou a culatra e acompanhou-lhe o retorno sem a largar, e logo sem quase denúncia no estalido obrigatório, de modo lento. Com lentidão semelhante, portanto, terá entrado a bala na câmara. Bem mais lenta que no lapso instantâneo da percussão a acontecer, segundo o que se perspectiva como indeclinável, qual convite para uma boda resumida a dois convivas de costas voltadas. Ignorar tão explícito desafio daria mais nas vistas que aparecer e corresponder à provocação. Um duelo segundo o modelo de há cem anos é prato cujo sabor se depreenderá sem provar, mas de que ninguém fará a menor ideia, afinal, se não se submeter ao segredo do chumbo como tempero.
”Herói, precisa-se”—, ouvira ele a si mesmo, em voz roída, na ocasião em que aceitara o repto e de modo breve combinara as formalidades mínimas, bem como a data, a hora e o local. O local seria o bosque de cedros, por ambos conhecido desde a meninice, se ali tinham jogado e brincado, corrido e saltado, e até fingido duelos, quem diria. Agora, adultos, a brincadeira era a sério, a matar e a morrer. E combinaram que tudo aconteceria sem testemunhas, padrinhos, árbitros. Na data ajustada, que é já amanhã, daqui a poucas horas, ao bater da uma da madrugada, aproveitando o luar e a largueza desta clareira, situados a vinte passos um do outro, ou dez de cada qual para cada lado, cada um deles a usar o seu próprio revólver e uma única bala já metida na câmara. E só aí rodopiariam e disparariam ao soar, após a enfadonha cantilena das sinetas complementares, a badalada solitária, porque é uma da manhã, no sino maior. Nem mais.
“Cobarde, oferece-se”—, remorde ele agora, sem se ouvir, emboscado entre os arbustos e moitas que acompanham este caminho terroso, e único, ao dispor de quaisquer passos apontados à clareira, ainda que se saiba dos enormes riscos (as autoridades têm alertado) de acorrer a sítios destes a tais horas. Poucos, muito poucos minutos passam da meia-noite, ainda agora se eternizaram aquelas doze badaladas, e ele já aqui está e desde há várias horas, mas escondido. Alheio à sagrada regra de cumprir as regras, gerais ou específicas, prefere contornar o perigo de levar um tiro e de ver a vida não ir além de hoje. Não passa de uma treta, essa coisa da honra, quando o que esteja em causa seja a perdurabilidade desejada para o coiro, por certo não preparado em caldeirões fabriqueiros que até à infinitude dos tempos lhe assegurem a resistência à perfuração por bala disparada a vinte passos. E a mais garantida defesa é o ataque, por antecipação das jogadas ao encontro do ímpeto adversário, bem se vê. Então não é muito mais fulminante e certeira uma boa carabina, com os cotovelos apoiados na terra, que uma pistola nervosa e apontada à pressa no meio da clareira à luz do luar? E se viessem nuvens encarvoar a não muita luz?
Sonoroso e grave, alguns segundos depois da melopeia repetitiva das sinetas, fez-se ouvir, por uma só vez, o sino maior do campanário, ao consagrar a passagem da primeira hora de mais um dia a cumprir-se e a eliminar da contabilidade dos dias por viver ainda. Mal dos muitos que não escutem a ressonância da badalada por terem já apurado, até à derradeira parcela, o resultado da soma do tempo que lhes cabia, e sem precisão de provas a ver se a conta está certa.
“O cobardolas não apareceu”—, diz-se o herói emboscado entre sebes e restolho, sobre a azinhaga térrea onde esperava alvejar e eliminar o outro herói desta história, de cujas façanhas muito pouco se avançou, por nítida preferência do autor pelo seu antagonista, que, cansado de esperar, adormeceu onde estava, abraçado ao espingardão.
Adivinhasse ele que a escassos metros, no outro lado da azinhaga, de igual maneira oculto pelo matagal, e também este a dormir agarrado a uma carabina, se enroscava a outra peça do binómio indispensável ao duelo em perspectiva, como há cem anos ou mais.
Desejemos que não ressonem, um e outro, ou acordar-se-ão.

terça-feira, 7 de julho de 2009

ASCENSÃO E DECADÊNCIA DE ALGUÉM QUE A CAIR SUBIU AO PEDESTAL DA POEIRA

De repente, como se fosse algo em tudo natural, arreou-lhe uma bela paulada no andar de cima, que o mesmo é dizer no baú da presunção de ser valente, e deixou-o sem ideias até ao dia seguinte. E quando as primeiras centelhas de luz enfim se lhe acoitaram entre as pestanas e lhe impuseram a dúvida de estar vivo ou não, tanto o cacete agressor como o dono do gesto, viandantes sem rosto nem sombra gravada no pó, por que descaminhos é que já não se perderiam na querença de ir embora, e depressa, para não voltar nunca mais. Mas quem é que lhe encomendara a sobranceria de se meter com quem não?
Derramado no chão, conseguiu ser durante horas a suprema imagem do miserabilismo à mercê de tudo, se até o mais desgraçado cachorro sem direito a nome lhe mijaria para cima. Da boca, entreaberta sob a aflição de entregar ar aos pulmões, escorria uma baba espessa, mista de escarro e de terra e com a mesma cor dos dentes. E custou-lhe um ror de minutos o esforço de reduzir a silhueta na estrada e recuperar o privilégio da verticalidade. Um fio de sangue seco, a ondear sobre a têmpora esquerda e a ser moldura da orelha respectiva, se tivesse um espelho ali a jeito, de pronto lhe daria notícia da rijura da bordoada e até da gravidade do lanho. Quem de tal o advertiu, para lá da dor sita no casco, foi a ponta do dedo indicador, esborratada por um estranho fluído peganhento e vermelhusco, no retorno da pesquisa obrigatória ao cocuruto. E estranheza bem maior sentiria ele, se não lhe acudisse à memória a causa de tudo aquilo, desde a caricatura do achado de si próprio, derrubado entre bostas e caganitas de quantos rebanhos por aqui passarão, até estas contorções em busca do restabelecimento de um equilíbrio problemático. Mas acudiu, e ele lembrou-se. E muito o beneficiará não esquecer tal episódio nos anos a consumir ainda. Não sendo de festejar, não é uma data qualquer aquela em que se aguente uma brutal mocada na cabeça e se fique com cabeça para contar, sem engano, quantas são as fases lunares, por exemplo.
Lá nas alturas, como arautos encarregados do anúncio de boas e más novas à ralé doida por elas, outras silhuetas conhecidas se devotam à função da contemplação predadora: milhanos e peneireiros e demais senhores do céu, saqueadores de capoeiras e verdugos de lagartixas e familiares nas horas vagas. A eles também cumpre a tarefa de limpar o solo e mantê-lo livre de quantas moléstias resultem da podridão de cadáveres. E dessa vocação, decerto, a aproximação de um local onde durante horas se viu um corpo de borco, como que à espera de quem lhe desse destino em conformidade. No presente caso, porém, parece que o animal ainda mexe e procura até equilibrar-se nas posteriores, obstinado, tremelicante, mas vencedor da peleja.
Ei-lo, outra vez de pé, em corpo inteiro e tamanho natural, o símbolo maior do destemor e da pujança nas muitas léguas em redor. Há por aí alguém capaz de negá-lo? Haverá quem se abalance ao suicídio de desafiar e defrontar o campeão? Bem, como aqueles dois forasteiros, pau atacante e mão motriz, não prometeram voltar, e como ninguém lá se viu nas redondezas a dar fé daquele trambolhão no vácuo, nada haverá a corroer o real papiro das crónicas já contadas e a contar aos vindouros. O importante, agora, é bem asinha encontrar um rio, uma fonte, um poço, um qualquer charco de rãs e lodo, seja o que for cuja água remansosa se lhe exponha como espelho, primeiro, e depois lhe lave e enxagúe o brio, não esquecendo a delação do brinco de sangue pendente da orelha esquerda.
“Parece que te cortaste ao fazer a barba”—, diz-lhe um, com uma boa ração de malícia na voz dos olhos e na outra, ao vê-lo esgueirar-se de monco mais rasteiro que os pedregulhos de granito da calçada e sem cumprimentar ninguém, danadinho por chegar a casa e por se furtar ao ácido oral e visual de quantos o pretenderiam interpelar.
“Tens sangue no pescoço”—, acrescentou um outro, tão verruminoso como o anterior no riso do olhar e na ênfase emprestada à pronúncia das palavras, uma por uma, de muro com vidros por cima.
“O melhor é desinfectar isso”—, remata um terceiro, a arrastar a fala como se rosnasse e arreganhasse os dentes acobardados a quem já lá vai, a quem já se esfumou na escuridão de um beco onde persiste em morar a sós consigo, e cada vez mais, por opção.
Pode um gigante cair e ser menor que o menor dos anões que dele se riu. Ao nível do chão, contudo, nunca ele será um anão, mas apenas e tão-só um gigante que caiu.