http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg

eliseu vicente

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 16 de outubro de 2007

ÁGUAS PASSADAS NÃO VOLTAM SENÃO QUANDO A CHUVA QUISER

O mestre senta-se ao piano, ajeita as lunetas sobre o osso do nariz, coloca a pauta em branco no cavalete, verifica o estado do bico do lápis, rombo de mais, pelo que de novo se levanta para o aguçar. Após a singular operação a canivete e sopro das aparas para a lareira, senta-se outra vez na banqueta e outra vez ajeita as lunetas no cabide natural do nariz, porquanto a pauta já lá está, fulgente e medonha de tão em branco, antes e após estar afiado o lápis.
Uma hora mais tarde, duas horas, muitas horas, toda a noite atravessada de berma a berma, e a brancura da pauta não se rende. Sequer um acorde, uma nota simples como um pingo de som na água do lago onde desagua a manhã. Amanhã, por esta hora, mesmo que não chova, a água do lago estará mais turva e a alvura da pauta ofuscará os olhos que nela queiram lavar-se, serenar o ardor e apenas adormecer. Quem sabe se durante a viagem dos olhos através do sono não se dão a ver panorâmicas deslumbrantes, passíveis de recolha e tradução em gotas melódicas, gotículas espargidas em gesto amante e amigo como redentora purificação.
E quem sabe se o mestre, por outro lado, não cede à tentação do desânimo sem meias palavras a atenuar, ao reconforto da desistência pura e simples, e não resolve dedicar-se a semear batatas, nabos, repolho?
Antes viver com as mãos sujas de terra, mas úteis e sapientes de si próprias, que tê-las lavadas e perfumadas pela patranha do êxtase contemplativo de fora para dentro. Que o mesmo é dizer inúteis.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

DO ANTES AO APÓS SE FICA O MEIO E A NUA EXACTIDÃO DO TEMPO EM CURSO

Vamos supor que esta rua não existe. Ou que de algum modo é possível ver daqui o tempo que a entendeu necessária e fez rasgar. Em vez dela, leiras de milho e hortaliça, nespereiras e tangerineiras, um regato a cirandar entre salgueiros, terra de cor negra e prenhe de água. Lá adiante, alguns sobreiros sob escolta de ciganos alapados à sombra deles. E a emoldurar a tela, onde predominaria o verde em todos os tons oferecidos pela paleta, o assombro do pinhal contra a encosta do monte que ali se acaba ou começa.
E porque o vale era vivo, justificar-se-á a recorrência de falar da passarada, desde melros a pardais e rolas, andorinhas em hora ciosa, e até de rouxinóis em nocturna melopeia. E dizer de coelhos bravos rente ao crepúsculo matinal, de rabilas no regato generoso, de cegonhas não alheias ao mito do serviço de transporte e entrega ao domicílio. E comentar quão dúbia terá sido a opção que transformou esse oásis no deserto hoje habitado por cimento e vidro, fumo de escapes e chinfrineira de buzinas e pneus, gentes de pedra sem água que as fure de tanto lhe dar.
Não existisse esta rua, e não existiria aquela passadeira onde a criança foi assassinada. Quem a assassinou? Outra criança, só um quase nada mais velha e com direito a matar gente por ter carro e carta.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

NEM SEMPRE DE JOELHOS NO CHÃO SE REZA AO CUME DOS CUMES

O beijo breve, talvez, mas inequívoco. Sobre os calcanhares e de frente um para o outro, estão os dois sentados no chão da sala, valendo-se do conforto da carpete, de mãos dadas. Se se quiserem deitar (não vão querer), bastará que se deixem cair para um dos lados, devagar, sem largar as mãos, e para tudo o que esteja em lance estarão prontos.
Ela, quase quarenta anos e ainda capaz de trepar paredes em busca do grito, com a tranquilidade intranquila de quem não sabe se quer mas quer e vai andando. E ele, nem trinta, um rapazito, sem saber onde sossegar os olhos para que os olhos o não traiam ao pintá-lo de escárnio ao rubro.
Como chegaram até aqui? E como é que daqui sairão? A qual deles cumprirá o gesto de acelerar ou deter o andamento das águas, em cujo reflexo se têm contemplado, hesitantes e cada vez menos firmes (não vão ceder) na não cedência à tentação que os envolve, os sacode, os amolece e enrija?
Quanto mais alta a tarde, lá fora, mais esta sombra apetece e escurece os olhos. E afinal quiseram, afinal cederam, afinal aí vão eles, em queda livre até aos antípodas ou mais abaixo um tanto. Quando lá chegarem, se chegarem lá…
“Dá tempo ao tempo, não fiques preocupado. A excitação em demasia, por vezes, funciona ao contrário”.

sábado, 6 de outubro de 2007

O CRIME DO SENHOR QUE NÃO SABIA O QUE O FILHO DELE SABERIA

O homem ainda conseguiu atingir o cimo da ribanceira, mas dali já não passou. Quer em corrida, quer a gatinhar, quer de rastos, a ziguezaguear e agachado ao rés das ervas, vinha em fuga de alguém ou de alguma coisa. Fosse do que fosse, fosse de quem fosse, deveria ser algo de aterrador, tal a expressão ainda retida pelos olhos quando deram com ele, alguns dias depois. E foi uma criança que o descobriu.
“Ó pai o que é aquilo?”− perguntou o garoto a quem o levava pela mão, farto de saber que era um corpo, que estava morto e há quanto tempo.
O pai é que não sabia que o filho sabia, e respondeu então ao inquiridor que aquilo só poderia ser um corpo humano, e que talvez tivesse sofrido um acidente, e que o mais aconselhável seria que desaparecessem dali bem depressa…
A polícia chegou logo a seguir. Parecia até que andava por ali perto, à espreita e à espera de que alguém tropeçasse naquilo e, como lhe competiria, chamasse de imediato a autoridade e fizesse a denúncia. Porém, para quê e por que meios chamar quem já dali estava tão próximo? E que ninguém tocasse em nada, adentro do espaço logo delimitado pela fita de plástico bicolor, as cores da polícia, cinzento e azul.
Descoroçoante para quem trabalha− diriam todos os agentes ligados ao processo− foi o facto de o juiz não ter autorizado a continuação da prisão do miúdo, implicado que estaria, com toda a certeza, na efectivação do crime. Assim, não puderam descobrir qual a origem da expressão de terror mantida pelo homem, alguns dias depois, quando o encontraram, no cimo da ribanceira, onde ele ainda conseguira chegar, em corrida, a gatinhar, de rastos, agachado e aos ziguezagues.
com o pai, não houve contemplações. Viu-se condenado por não ter chamado, de imediato e como lhe competiria, quem já dali estava tão próximo, a autoridade policial encarregada de desvendar aquele mistério. E para isso é que lá estava a fita, de plástico e bicolor, cinzenta e azul.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

À MISÉRIA DE QUEM SIGA E À FORTUNA DE QUEM FIQUE

“Mais vale ficar velho que pobre”−, decretou o velho, em voz de pau enfermiço e inconvicto, gasta como ele. Vozes há que ao ouvi-las dizem tudo sem que nada de importante delas se escute e se pondere, se compare, se memorize, se torne pão e milagre. Basta-lhes ser para que não sejam.
E está no ar o sacramento das vindimas. Tudo o que acontece, gira em redor da quase sagrada missão de esvaziar as vinhas e pôr a correr essa poderosa infusão inventada pelos deuses, para que nunca deles se negasse a raiz humana.
Entretanto, com o velho, estão outros. Tão velhos como ele e como ele ricos, decerto. A riqueza é ao que se crê relativa. E tanto é rico o que tem como o que não tem tanto. Já com a velhice, não será bem assim: um velho é um velho, e não tem marcha-atrás nem pega nas descidas. Aquele, todavia, por se intitular rico, pensa que o ferrão da pobreza pica mais fundo que o lumbago ou a gota dos decrépitos como ele.
Estão à porta da adega, a preparar o vasilhame e a engrossar as perspectivas com o inevitável optimismo. Já fará parte da lida agrícola esta espécie de contabilidade prévia em relação ao número de pipas e ao grau hipotético, sempre o mais alto de sempre até ao da safra que virá um dia. E bebem vinho do antigo, conservado para assinalar ensejos como este, em que se engrossarão as perspectivas com o inevitável optimismo e o vasilhame recupera o ar activo.
“Olhe que não sei”−, replica outro velho ao outro, um quarto de hora depois, ainda a cismar no que lhe ouvira. Ouvidos há cujo tempo de reacção será mais explícito que uma resposta pronta a servir no momento, seja ela discordante, esteja em concórdia total. Basta-lhes ser para que sejam.
“Nem eu”−, acrescenta um terceiro ao segundo velho, ao fim da tarde do dia seguinte, no regresso do cemitério, a pé, com todo o vagar, onde acabaram de deixar enterrado o primeiro, o dono da adega e rifonista por mania visceral que se dera ao descuido de começar a conversa.
É que no preciso instante em que este, ontem, outros quinze minutos mais tarde, já erguia o copo em gesto amável, como enfático enquadramento da contra-resposta a despejar sobre o promotor da discórdia, teve um ataque, deu-lhe uma coisa, foi-se. Nem mais um ai se lhe ouviu.
A riqueza é ou tal se aparenta relativa. Mais vale ser rico que pobre, mas antes pobre que morto.
(Guiães, 29-09-2007)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

DE AZULEJOS QUEBRADIÇOS AO LABOR XISTOSO E RIJO COMO ESCÁRNIO

“Que quem por aqui passe vá em paz e volte um dia”−, reza o letreiro à saída, ou à entrada, da povoação. Quem o executou e quando e à ordem de quem ali o fez implantar, não se sabe. Especula-se muito, muito se comenta e acrescenta, evoca-se a sapiência de cãs já delidas de silêncio sob várias décadas de mármore, proclama-se com o colorido enfático das odisseias epopeicas a aparição desse painel de azulejos onde a legenda se inscreve. Fixado num baldio ao correr da rua, qual padrão das usurpações mercenárias à sombra do madeiro em cruz, é assunto sempre grato e dado ao debate em todos os púlpitos sensíveis, desde o das homilias ao do balcão da taberna, sem que jamais se oblitere o do barbeiro, o tear por excelência de quantas intrigas se instilem. Quer na missa, à hora dela, quer no tasco, a toda a hora.
Tem sofrido, ao longo das mesmas décadas de incógnita em relação à graça de quem o pariu, ataques mil de mil vândalos nocturnos, e tem conseguido resistir por mão de amigos que o tratam, lhe saram as feridas, o rejuvenescem, teimando em conservá-lo como símbolo supremo da aldeia e de quem nela nasça, viva e morra. É gente sã e hospitaleira, solidária e não servil. É gente boa, e revê-se nessa frase inflamada, como se cada um dos seus habitantes não deixasse de a dizer a quem parte, desde que quem arribe satisfaça as normas prescritas nos canhenhos mentais de cada qual: leve consigo apenas o que trazia à chegada; e nunca pense em ficar.
Como se percebe, coexistem duas frentes opinantes, sempre em tréguas e sempre em guerra, sob um estandarte comum e por ambas consagrado, porque com distintos modos de olhar o maior ou menor franqueamento das fronteiras à aluvião da plebe andante: alguns, a grande maioria de quantos afirmem conhecer os pais, irredutíveis acerca da manutenção do filtro e dos princípios contentores; e outros, mais tenros na idade, resumidos a uma terça parte de quantos pouco se importem com a nascença nas silvas, tidos por detractores da tradição, enquanto apóstolos da demolição das muralhas ancestrais e da abertura gradual aos novos ventos em curso pelo mundo além. De pouco ou nada valerá argumentar aos desta facção de ideias imberbes, zunem os outros que o lema lendário é enganador e hipócrita ao dizer a quem por lá passa que volte um dia, quando em total verdade não se conhece uma única história de alguém cuja coragem lhe invertesse alguma vez o rumo aos passos e de novo o encarreirasse até cá. E nenhuns dividendos dialécticos conseguem os primeiros os da tranca maioritária quando esgrimem a balela de que também não há histórias onde a insatisfação de quem passou seja sequer mencionável e passível de prova.
Por mirabolante que pareça, ninguém parece ter estranhado muito que em determinada ocasião, ao sobrevir dos arrepios sobre o proémio outonal, tivesse aparecido sobre a estrutura do painel, como se óbolo fosse do cadeiral divino, um pesado pedação de ferro em bruto, resto de alfaia sem préstimo nem conserto, para lá lançado por algum gigante e com músculos de excepção, ninguém adivinhando quem, como ou com que subtérreo fim mal enterrado.
O fim em projecto oculto veio a descobrir-se no dia seguinte ao da matreirice do ferro lá encavalitado: como durante toda a noite praguejaram céus e infernos e nuvens e ventanias em coro afinado contra a terra, num fervor de despedaçar ovos aquém da postura, um dos raios previsíveis consumou o que os predadores da tradição tanto ambicionavam, rachando de alto a baixo o mosaico e num sopro o pulverizando.
Mas já se encontram graciosas miniaturas do painel à venda, em xisto e com a frase completa, a preços módicos. Tanto no tasco, como na igreja.

(Guiães, 27-09-2007)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

SERIAM TÃO-SÓ UNS DEZ MENINOS AOS SALTOS MUITO LADINOS

É este andar assim, em deambulações, erradio, que lhe turva os pensamentos e o perturba. Ou será essa perturbação, pelo contrário, que o obriga a andar de tal modo? O useiro dilema do cão em corrida atrás da cauda. Mas se assim não andasse, perturbado embora, de que outra maneira andaria? E se não o perturbasse andar como anda, que outro desgaste daria ele aos neurónios relativos a perturbações interpostas por andar não importa como? De roda, de gatas, às arrecuas, aos pulos, à marrada, que diferença tonitruante viria a fazer do magote em marcha acelerada a caminho do emprego e ainda para cá do sol trescorado, ou nos delírios da bola sem um cêntimo na algibeira, ou de joelhos na missa dominical, ou pelas estradas fora e de rastos onde o comércio de milagres dita leis e se faz hipotecar o reconforto?
Um bom cálice de conhaque à moda antiga, e eis a questão de ser ou não, em justa medida, ande como ande quem em si se instale e moureje, capaz de reconquistar o equilíbrio. Se bem que, por vezes, nem com meia dúzia de cálices se consegue já restabelecer um sentido viável nos passos dados e a dar. Daí, causa e consequência, toda essa perturbação de canídeo com perceptíveis sintomas de esgana, sempre a correr sem correr, num desvairo, atrás de si mesmo.
“Mais um, por favor”−, sussurra ele ao bigode servil, como se falasse consigo através da própria reflexão naqueles olhos de bovino à espera de vez no matadouro.
E já será o sétimo, numa contagem a fazer pelos dedos todos, sem sobras, amanhã, com o desconsolo da ressaca a servir de mortalha ao arrependimento, tardio e inútil como o remorso de quem morra mergulhado no despautério de viver em cada dia, de uma só vez, quantos dias lhe sobejem.
“E vão dez”−, rosna-lhe às tantas o servilismo bigorrilhas, de olhos mansos como facas ainda no bolso, cinco minutos após o nono e dez depois do oitavo. Tratando-se de cálices, como se adivinha, e não dos soluços de quem os carrega.
Turbação, perturbação, conturbação: o enjoo e a vertigem de vagas marinhas em seco e nada mais, é o que é. E não é pena que nas mãos só se contabilizem cinco dedos em cada qual e de cada vez que se contem?
(Guiães, 25-09-2007)